SLINGS

sempre me fascinaram, pela extrema simplicidade: um pedaço de pano que envolve o bebê junto ao corpo da mãe ou pai (ou outro adulto). Acompanhando a ervilha cor de rosa, blog de Rosa Pomar, já muitos anos atrás, percebi que é um modo de carregar bebês que favorece a proximidade, auxilia a criação de vínculo — além de ser extremamente prático. Os carrinhos, mais comuns hoje em dia em algumas partes do mundo, surgiram num momento em que a criação dos filhos passou a ser delegada a babás; a partir da inserção do carrinho, a distância corporal entre o bebê e o adulto foi aumentando.

Vale a pena conhecer a pesquisa e a experiência de Rosa Pomar sobre slings (que admiro também por seu trabalho em torno da produção de lãs e fios, do tricô, da fabricação de bonecos…), percorrendo todos os posts sobre o assunto.

Foi justamente da Retrosaria (loja dela) que comprei o primeiro sling; recebi pelo correio (quando for algum dia a Lisboa visito pessoalmente!). Trata-se de um pouch sling, modelo simples, sem nós ou argolas, lindo, dupla face, com jeans e tecido africano. Assim que chegou, fui testando, ainda no começo da gravidez.

Mas não me contentei somente com um modelo. Gentilmente, um amigo me presentou com outros dois: um wrap e um de argolas, daqui. Pronto, estava equipada com três tipos diferentes! Pesquisei muito na internet, li blogs, assisti vídeos ensinando a colocar o bebê em função de seu tamanho. Os recém-nascidos precisam de mais apoio para a cabeça, que não sustentam ainda sozinhos. A posição do joelho e das pernas é muito importante, para não causar problemas nas articulações. Também não é indicado carregar o bebê virado para fora. Há também outros tipos de sling, além daqueles que escolhi. Indico os posts do mamaé, os textos do slingando e a seleção temática sobre slings no mamatraca. Como se pode ver, quem fala sobre slings são mães e pais que resolveram adotá-lo na criação de seus filhos; interessaram-se tanto pelo assunto que passaram a pesquisar e fabricar seus próprios slings.

Assim como quando escrevi sobre fraldas de pano, ressalto que este não é um post patrocinado, mesmo que eu esteja mencionando produtos e lojas.

No próximo post, trato da experiência nossa com os slings. Por ora, recomendo a leitura do texto “Crianças proibidas de ver”, de Fernando Reinach, publicado originalmente em http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,criancas-proibidas-de-ver,1011295,0.htm. Acho tão interessante que o copio aqui um longo trecho, coisa que não faço normalmente — e acreditando que é mais indicado ler a coluna integralmente, no endereço acima. Mas vai que esse texto fique fora do ar, pelo menos aqui tem uma versão dele… Fica para pensar se a comodidade do carrinho (do ponto de vista dos adultos) beneficia e compensa realmente, quando nos colocamos no ponto de vista da criança.

A imagem abaixo é do livro de que fala Reinach, “The world until yesterday”; na capa, temos justamente um bebê sendo carregado nas costas de uma mulher.

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Nas sociedades tradicionais, as crianças, antes de aprenderem a andar, são carregadas pelas mães. Em todas as culturas tradicionais, logo que a criança consegue firmar o pescoço, ela é transportada na posição vertical. Pode ser nas costas ou na frente da mãe, seja com o auxílio dos braços ou utilizando dobras das roupas ou artefatos construídos para esse fim. 

Nessa posição, o campo visual da criança é aproximadamente o mesmo da mãe. Ela olha para a frente e pode observar todo o ambiente em sua volta praticamente do mesmo ângulo e da mesma altura da mãe. O horizonte, as árvores, os animais e seus movimentos são observados pela criança da mesma maneira que a mãe observa seu ambiente. Quando um pássaro canta e a mãe vira a cabeça para observar, a criança também tem uma chance de associar o canto do pássaro à sua plumagem. A criança observa o trabalho de coleta de alimento da mãe, como ela prepara a comida, o que a assusta, o que provoca o riso ou a tristeza na mãe. Carregar uma criança na posição vertical faz parte do processo de educação.

Isso era ontem. E como é hoje? Inventamos o carrinho de bebê. As crianças menores são transportadas deitadas de costas, olhando para o céu (ou para a face da mãe). A criança não compartilha a experiência visual da mãe, não consegue associar as expressões faciais da mãe a objetos e sentimentos. Os sons ouvidos pela criança dificilmente podem ser associados a experiências visuais, atividades ou sentimentos. Deitadas, as crianças modernas só observam o teto (dentro de edifícios) ou o céu (ao ar livre). 

Como o céu é claro e incomoda a vista, muitos desses carrinhos possuem uma coberturas de pano, o que restringe ainda mais o campo de visão e empobrece a experiência visual da criança. Não é de espantar que um bebê, cujos ancestrais foram selecionados para aprender a observar o meio ambiente desde o início de sua vida, fique entediado. Mas para isso temos uma solução moderna: uma chupeta que simula o bico do seio da mãe. Hoje, carregar uma criança é considerado um estorvo, mas nossa nova solução distancia fisicamente a criança da mãe e não permite que elas compartilhem experiências sensoriais. Transportar uma criança deixou de fazer parte do processo educacional.

Hoje sabemos que o desenvolvimento do córtex visual, a parte do cérebro que processa imagens, não termina durante a vida fetal, mas continua após o nascimento e depende do estímulo visual constante para amadurecer. Os carrinhos de bebê de hoje são mais novos, mas será que são melhores?

É incrível, mas hoje, numa época em que educar para o futuro é o lema de toda escola, numa época em que tentamos alfabetizar as crianças cada vez mais cedo, abandonamos o hábito milenar de permitir que as crianças olhem para a frente e compartilhem as experiências vividas por suas mães.

A TROCA DE FRALDA

ovonovo_era um momento bem estranho, no começo: tudo novo, pra nós e pro Francisco. Lembro que ele estranhava, reclamava, choramingava. Um bebê só conhece a posição de deitar depois de nascer. E não somente deitar mas estar rodeado pelo vazio, cercado de luzes e ar. Deve dar medo. Também acho que escolhia a hora errada: ele queria mamar e eu estava ali despindo, limpando.

O trocador fica no banheiro, onde é mais quente; é um modelo dobrável. Colocamos uma flanela por baixo do Francisco. Para limpar, algodão embebido em água morna. Aqueles lencinhos umedecidos podem até ser práticos, mas deixam a pele mais irritada. Se o algodão com água limpa bem, pra quê gastar mais? Maisena deixa tudo sequinho antes de colocar a fralda. Sobre as pomadas, percebemos com o tempo que é melhor evitá-las. Se aparece uma feridinha, melhor esperar que ela se cure sozinha (lavando sempre bem e recorrendo à maisena). Colocar sempre pomada tira a defesa natural da pele.

Voltando ao estranhamento do início: durou alguns dias. Fomos nos dando conta de que nós mesmos, Marco e eu, poderíamos relaxar mais, curtir o momento. Deu bem certo. Trocar a fralda virou uma brincadeira, talvez a primeira, do Francisco: beijar, massagear, conversar, cantar são algumas das coisas que começamos a fazer. Após ter mamado, é claro, a troca de fralda poderia durar meia hora, até mais! Era a oportunidade para ele mesmo conhecer o seu corpinho, testar a própria voz,  observar o mundo. E ficar um tempo livre da fralda…

Meses depois, a troca de fralda passa a ser um momento meio entediante, ahaha, visto que se repete tantas vezes ao dia! Pelo que já ouvi, isso acontece com muitos bebês. Apelamos para a criatividade: coloco brinquedos dentro do armário do banheiro, deixamos ele se virar (tomando muito cuidado!) dentro do trocador e, inclusive, passo a trocá-lo em outros lugares, em cima da cama, no chão da sala, para variar um tantinho.

Trocando a fralda em outros lugares da casa, me passou pela cabeça a (ousada) ideia de deixar o Francisco sem fralda, brincando… Nem pensamos a respeito, mas nós, adultos, condicionamos a criança a usar fraldas para, anos depois, tirá-la desse hábito. Sobre isso, é interessante ler esse texto sobre elimination communication. Mesmo sem ter feito com o Francisco (poderia ter feito, por que não?), penso bastante nessa questão, ao menos inspirando-me nos seus princípios: manter olhos abertos para a linguagem corporal do bebê, comunicar-se com ele de todas as formas possíveis, passo a passo…

AS FRALDAS DE PANO

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[este não é um post patrocinado, por mais que esteja falando de produtos e mencionando lojas]

foram uma escolha feita já nos primeiros meses da gestação; pouco antes, estava pesquisando sobre coletores menstruais, para fugir aos habituais absorventes, que dão alergia na pele (entre outros pontos negativos). A mesma loja oferecia fraldas de pano. Pesquisei um tantinho e logo nos interessamos pela ideia de também fugir às fraldas descartáveis. As razões são várias: economizamos dinheiro, consumimos menos recursos do meio ambiente; menos lixo, menos assaduras, mais consciência corporal para o bebê — aqui, de maneira mais detalhada, alguns dos argumentos a favor das fraldas de pano. Pesquisando na internet (jogue “fraldas de pano” no google para ver os resultados), é possível encontrar muita gente fabricando e vendendo; há diversas opções de modelos, tamanhos, tecidos e cores.

A gente comprou todo o kit: 20 fraldas tamanho recém-nascido até 3 meses; 20 fraldas para 3 meses até 3 anos. Levamos em conta que um bebê pode precisar trocar de fraldas até 10 vezes ao dia. 20 fraldas são suficientes para dois dias. As fraldas do primeiro dia estão secas no terceiro dia, e assim por diante. O tamanho pequeno serviu para o Francisco até os 4 meses, quando aos poucos começamos a usar os modelos maiores.

Nem pensamos em usar uma parte de fraldas descartáveis — tem gente que opta por isso, usar um pouco dos dois tipos. Para nós, o investimento inicial foi enorme, pesou no bolso comprar todas as fraldas de uma vez só. Tem gente que pede aos amigos de presente, num chá de fralda. De qualquer maneira, compensa muito, levando em conta a economia que se faz a médio e longo prazo. Pensando agora, tivemos aquele impulso idealista. Tão idealista que a gente tinha esquecido um detalhe: em casa, nós não tínhamos máquina de lavar roupa. Então, no primeiro mês, nós lavamos as fraldas sujas de xixi e cocô na mão, até nos mobilizarmos para adquirir a máquina de lavar. Algumas vezes a sogra ou a cunhada lavaram na casa delas; ajudou bastante.

Deu trabalho? Ora, deu muito trabalho! Assim que uma fralda era trocada, deixávamos de molho, depois a gente lavava com sabão de coco e ficava um tempo de molho em água quente. Em seguida, varal. As fraldas normalmente estão secas depois de um dia, mesmo com frio. Dia úmido é mais complicado. Sempre que possível deixamos secar ao sol.

Depois da máquina de lavar, tudo mudou :) mas a rotina é fixa; todo dia tem uma máquina para lavar, seja com as fraldas, seja com as roupas sujas do Francisco. Antes de colocar na máquina, tiramos o excesso de cocô com uma escova de dentes velha, passamos sabão de coco, enxaguamos — uma espécie de pré-lavagem. Na máquina, usamos sabão líquido para roupas delicadas, uma só lavagem, de preferência quente (40 ou 60 graus), sem amaciante.

Mesmo lavando na máquina, é necessário lavar primeiramente à mão. Sim, é contato com o cocô e o xixi do bebê (para quem se incomoda com isso, é um ponto negativo; não é o nosso caso!). Organizando bem toda a lógica de lavagem, nunca faltou fralda.

Outro ponto a se pensar: fralda de pano exige uma troca intensa, 2 em 2 horas, 3 em 3 horas. Não existe essa coisa de deixar 6 horas uma fralda no bebê, como prometem as descartáveis. Isso significa que, mesmo de madrugada, nos primeiros meses, é necessário trocar. Caso contrário, o bebê fica encharcado. Com o Francisco, depois dos 5 meses, começamos a usar um modelo noturno, de pano. É uma fralda com mais tecido absorvente. Dura todo o período de sono. Algumas madrugadas eu ainda troco, de qualquer forma.

No começo, por conta da inexperiência e do tecido ainda novo, aconteciam muitos vazamentos. Às vezes o piupiu ficava viradinho de lado, às vezes um botão meio aberto. Levando em conta o cansaço do pós-parto, eu pensava: “gente, por que escolhemos essas fraldas!?”

Mesmo assim, não nos arrependemos de nossa escolha. Vejo minha vizinha, com dois filhos pequenos, entrando em casa com caixas e mais caixas de fralda descartável e me sinto aliviada.

Ainda voltarei a escrever sobre o assunto. Até o instante o Francisco toma somente leite materno. Ao introduzir alimentos, as fezes mudam e provavelmente toda a experiência com as fraldas! E, depois disso, como será o desfralde? to be continued…

“ESCUTE SEU CORAÇÃO”

foi o que uma terapeuta disse para mim, a respeito da criação de filhos. A frase é um clichê — mas nem por isso deixa de ser tão verdadeira. Escutar o coração seria deixar falar a voz interior, amar com todas as forças, sem limite.

ovonovo_-9Não dá pra escutar direito o coração quando se aceita tudo o que dizem os médicos; quando se quer agradar e obedecer aos conselhos que a família repete; quando fazem comparações com outras mães, pais e bebês; quando se pensa em seguir um manual de como viver com um bebê; quando se dá ouvidos aos palpites da velhinha no ponto de ônibus.

É difícil escutar o coração em meio a tanto barulho.

Escutar o coração não é afrontar, nem fugir dos rumores — até porque silenciar o mundo não seria possível. É ouvir, filtrar, refletir sempre. Procurar nas palavras dos outros algo que encontre eco, que entre em sintonia com o que temos lá dentro. Difícil, sim. Mas quem disse que seria fácil?

NÃO POR ACASO

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eu tinha aqueles momentos de insônia  na madrugada: era pra entender que uma noite inteira de sono seria coisa inexistente no futuro; não por acaso eu também acordava no meio da noite com uma grande fome: era pra entender o Francisco e sua necessidade de mamar a qualquer hora; não por acaso eu tinha enjoos e indigestões no começo da gravidez: era pra compreender melhor as cólicas e desconfortos do Francisco nos primeiros meses; não por acaso mudei planos, revi algumas ideias, pesquisei muito: era para me dar conta de que um bebê tem o mundo todo para descobrir, tudo é novo e imprevisível; não por acaso eu suprimi café, álcool, algumas coisas gordurosas ou fortes demais: era para eu perceber que um bebê não tem um estômago maduro o suficiente para determinados alimentos; não por acaso meu humor oscilava: era pra saber viver as mudanças e fases delicadas de todo bebê, as semanas mais dependentes de mim; não por acaso eu precisava dormir muito, seja de manhã, de tarde ou à noite: era pra entender que o Francisco precisa dormir muitas vezes ao dia, sem hora marcada; não por acaso o barrigão dos últimos meses me fazia caminhar mais lentamente, me impedia alguns movimentos: era para me identificar com  o Franciso, quando quer alcançar algo que vê à frente e ainda não consegue

— ao perceber a conexão entre o que acontece comigo e com meu filho, tanta coisa se torna mais compreensível, tanta coisa faz sentido… e tudo é bem-vindo.

ROSA OU AZUL?

é uma outra formulação para a pergunta “é menina ou menino?”; impressiona essa distinção entre cores e sexo que, para começo de conversa, não passa de uma construção cultural.

Ela tem ficado cada vez mais evidente para mim, especialmente a partir do começo da gravidez. A cada dia que passa, vou prestando mais atenção a mães, pais e crianças que conheço e vejo pela rua: como se relacionam, o que as crianças vestem, onde vivem, do que brincam, o que compram no supermercado. Muito do que vejo — meninas com seus casacos rosa, meninos voltados ao perfil “pequeno aventureiro” — atende a essa separação de gêneros.

Ainda passeando pela rua, fico alegre quando alguém me aborda, perguntando se o bebê que carrego nos braços é um menino ou menina — coisa que acontece bem frequentemente. Fica difícil dizer se o Francisco é um menino porque foge ao azul, vestindo um casaco amarelo ou uma blusa cinza; melhor assim.

Já relatei, nos posts anteriores, um pouco da nossa experiência: no primeiro dessa série, conto como e porque a gente preferiu esperar o nascimento para saber se teríamos um filho ou uma filha; no seguinte, faço algumas reflexões em torno de uma série de fotos que explora o rosa e o azul em quartos de meninas e meninos.

Nem preciso dizer que, desde que nasceu, ele já ganhou muitas roupas e presentes que seguem o azul — é o que acontece com todo menino, soa uma obviedade. Todo presente é um gesto de carinho e consideração, é claro; mas no fundo torço o nariz, ao me dar conta de que a pessoa  encontra-se limitada no momento de escolher algo para uma criança. Não me excluo dessa situação: muitas vezes sinto-me num beco sem saída, quando preciso comprar roupa ou brinquedo para uma criança.

[adendo: por que essa polarização é ruim? eis uma triste história, de um menino de 11 anos, que gosta de rosa e pôneis]

Ao começar a escrever esse post, partindo do título, lembrei-me de “Rosa e azul”, pintura de Renoir, uma das mais populares do acervo do MASP. Ainda pequena, visitando o museu, pensava: “são duas meninas, mas uma delas está usando um vestido azul!” O que se esperaria de um título como “Rosa e azul” seria o retrato de uma menina e um menino, cada um com a sua cor. Possivelmente eu continuava a pensar assim: “ah, vai ver que antigamente as cores não eram separadas como são hoje em dia…” — quem sabe!

Voltando ao início do post, estamos em meio a uma construção cultural muito polarizada entre os gêneros. Diz-se que, antes das Grandes Guerras, as cores associadas a meninos e meninas era o inverso de hoje. Aos meninos era aconselhado usar rosa, que era uma versão leve da cor vermelha, tão comum nos artefatos de guerra. O azul, cor da Virgem Maria, seria a cor para as meninas. Depois, por conta de uma estratégia de mercado, o oposto começou a ser oferecido para mães e pais.

Essa polarização entre rosa e azul já existia quando eu mesma era criança. Eu gostava de vermelho (que por acaso era a cor mais forte do uniforme do pré: camiseta branca, shorts e conga vermelhos) mas não vivíamos em condições em que eu pudesse escolher e consumir de acordo com meus gostos: as roupas e sapatos passavam dos primos grandes para mim, e depois para minha irmã e meu irmão, menores. Os brinquedos eram coletivos. Uma bicicleta foi passada do meu primo, minha prima e depois para mim, até quebrar.  Um quarto só para mim? — nunca tive. Comprava-se peças de lego simples, que serviam para montar qualquer coisa — não somente uma casa de bonecas ou um posto de gasolina, como se vê mais hoje em dia. Era muito difícil pensar em algo personalizado, ou que valesse somente para menino ou menina.

Um desenho da infância que me chamava a atenção era Cinderela, da Disney. Sabe-se lá porque motivo a cor predominante dos seus vestidos é azul, mesmo quando ela é a doméstica na casa da madrasta. Mas há uma cena, talvez a mais feliz de todo o longa, em que ela dança com o príncipe. Naquele momento, seu vestido muda de cor: passa do azul ao amarelo, ao rosa, verde… vai mudando, mudando. Talvez assinalasse que a felicidade poderia ser de qualquer cor, de todas as cores.

O PROJETO ROSA E AZUL

ou, em inglês, “The Pink and Blue Project” é uma série de fotografias da sul-coreana JeongMe Yoon. Seu trabalho ilustra bem a separação entre cores e gêneros — e como ela está relacionada a um consumo desenfreado, a uma acumulação intensa de objetos. Já comecei a falar sobre isso no post anterior.

[clique nas imagens para vê-las no site da fotógrafa, em tamanho maior]

Ela relata que o projeto partiu de sua filha, que escolhia somente roupas e brinquedos rosa. Começou a fotografar somente meninas, quando se deu conta de que seu filho, assim como tantos outros meninos, possuem brinquedos, utensílios e roupas que seguem escalas de azul, das mais escuras às mais claras.

Olhar a série de fotos, que começou em 2005 e continua aberta, dá uma certa tontura. Há crianças de todas as idades, bebês muito pequenos para terem um gosto ou autonomia para escolherem simplesmente tudo de uma só cor para si mesmos. Vemos até uma jovem garota, já meio grandinha mas que não quer nada para si que não seja rosa — e assim dá o sinal de que esses papéis fixos entre o masculino e o feminino não se limitam somente ao período da infância. Crescemos em torno de determinados limites para o que se espera de uma menina, uma mulher, e um menino, um homem. Muitas das meninas estão vestidas de princesas, como se pudéssemos ter tantas delas na vida real. Os meninos mostram seus aparelhos esportivos, de ciências, seus animais e mapas, como caçadores, exploradores ou cientistas.

Além disso, as crianças são todas fotografadas sozinhas, em seus quartos, rodeadas por seus objetos. Não porque estamos vendo filhos únicos, não é o caso. A questão é que cada um daqueles indivíduos em formação possuem um quarto para si, um espaço de construção de si mesmos. Mas eles parecem tão pequeninos face ao amontoado de aparatos, limitados pelas paredes do cômodo; quase não se vê janelas, talvez nenhuma porta indique a saída.  Estáticas, sem movimento, as crianças estão longe da natureza, cercadas: tudo ao redor delas é comprado, fabricado, confeccionado, direcionado para quem ela deve ser. As fotos ganham um ar de peça publicitária. Os objetos estão expostos como numa vitrine de loja, dentro da qual a criança está mais para um manequim ou um boneco.

Como se vê no caso bebezinho acima, todo rodeado de azul, ele nem tem a possibilidade de escolher algo que fuja a essa cor. De que maneira ele poderá libertar-se dessa imposição?

Uma amostra está nesse outro par de fotos: duas irmãs, fotografadas num espaço de tempo de três anos. Em 2006, bebês; em 2009, já grandinhas. O volume de objetos aumentou consideravelmente. A tonalidade de cores não: cada peça pertence a uma escala do lilás ao rosa. Ao que tudo indica, esse seria o ponto de partida para uma continuação da primeira série: The Pink Project II.

Pode-se argumentar: ah, mas elas gostam de rosa! Claro, admito que as crianças desenvolvam seu gosto pessoal. Mas de que maneira elas puderam experimentar e descobrir coisas diversas daquilo que lhes foi dado lá no comecinho, quando eram pequenas? Será que esse gosto pelo rosa não está respondendo a uma expectativa que pais e adultos fazem dessas meninas?

JeongMe Yoon começou um outro projeto em paralelo, “The Color Project”, que conta, segundo seu site pessoal, com apenas duas fotos até o momento: uma menina e sua fascinação pelo amarelo; um menino em seu quarto todo vermelho, incluindo a decoração da parede e cortinas. Uau, pode-se pensar: trata-se de duas crianças que conseguem fugir à dualidade rosa-azul, escolhendo para si objetos não necessariamente “masculinos” ou “femininos”.

Pode até ser. Mas continua impressionando a acumulação intensa, o consumo aparentemente sem limites. No caso da menina, boa parte daquilo que ela exibe está relacionado ao Bob Esponja, cuja principal cor é amarelo. Então, qual seria a seria o mecanismo: ela gosta de amarelo porque gosta do Bob Esponja ou gosta do Bob Esponja porque ele é amarelo? Arrisco dizer, sabendo que posso estar enganada, que o gosto partiu do personagem de desenho animado. De maneira muito patente, é construída uma relação direta entre a cor e o personagem. E, outra hipótese: a menina quer adquirir alguns dos atributos do Bob, um pouco daquele jeito espalhafatoso e nonsense. Ela não terá dificuldade em encontrar mais e mais brinquedos, livros e toda uma série de cacarecos licenciados com o Bob — enquanto continue na moda. Mesmo outros personagens de desenhos animados tem a cor amarela: Piu-piu, Pokémon, os Simpsons, aqueles inúmeros serzinhos do filme Despicable me… Já no caso do menino, pode-se supor que sua paixão, sua mania, esteja relacionada ao universo dos bombeiros, como se vê na pintura da parede — profissão frequentemente associada ao gênero masculino.

Pronto, acredito que não preciso ir muito mais longe nessa reflexão. Eu poderia me estender ainda bastante sobre essas fotografias. A gente se preocupa em não dar ao Francisco essas escolhas limitadas, que o mercado ou a prateleira das lojas define. Que ele não precise demonstrar seus gostos, desejos e habilidades somente em função do que se espera de um menino. Que a sua identidade, sua personalidade e sua felicidade não dependam de um quarto atulhado de roupas e brinquedos.

Finalizo com um exemplo do que fizemos já na prática. Francisco ainda não tem um quarto para si, mas abrimos um cantinho para ele começar a engatinhar e brincar. Escolhemos um tapete que não remetesse a algo concreto (havia tapetes lindíssimos com mapas, selva, desenho de ruas, na seção infantil) ou que tivesse uma cor dominante. Esse tapete com estampas de botões nos pareceu abstrato o suficiente. Tem várias cores bonitas e bem marcantes. Ele gosta de passar a mão nos limites entre o branco e o colorido. A estampa lembra até aquele jogo com círculos e uma roleta, em que se coloca mãos e pés na cor que a roleta indica (não lembro o nome desse jogo, quem souber me diga!). E, mesmo parecendo um brinquedo, esse tapete não está à venda na seção para crianças… Em cima dele, colocamos uma coberta laranja e uma colcha de crochê que fiz durante a gravidez (farei um post sobre ela em breve), almofadas, brinquedos, bolinhas de meia.

tastrup-teppich-kurzflor__0185525_PE337535_S4Ainda volto a falar sobre o assunto no próximo post (e quem sabe ainda depois do próximo!). Por ora, fica o meu desejo que as crianças possam ter uma infância bem colorida — e não monocromática.

É MENINA OU MENINO?

— eis uma das perguntas mais frequentes quando se anuncia uma gravidez, quando se vai comprar roupas, brinquedos ou qualquer outro presente para um bebê.

Hoje em dia, com ultrassom, nem se discute: aos três meses, já se pode identificar o sexo do bebê. Nós somos aqueles 10% que não quiseram saber; que preferiram deixar para a hora do nascimento essa descoberta. A cada ultrassom, o Marco e eu fechávamos os olhos para não ver o pintinho ou a pererequinha. A esperta da ginecologista já sabia, mas guardou o segredo para nós.

Como a gente respondia aos outros: — não sabemos! — quando perguntavam sobre o sexo, vinham muitos palpites. Olhavam meu rosto, para ver se tinha mais espinhas, se estava bonita, se meu cabelo estava sedoso. Olhavam para a barriga, para ver se era pontuda ou redonda; se o quadril estava mais largo. Até cálculos com nossas datas de nascimento fizeram.

A maior parte desses palpites estava correta: era um menino, o Francisco, lá dentro da barriga. Algumas poucas pessoas diziam que era uma menina. De toda forma, para nós, isso era indiferente. Tanto faz se menina ou menino. Para nós, era bebê, filhote, criança, sem artigo para definir.

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— Indiferente, como assim tanto faz!? Mas como vocês vão comprar as roupinhas, os móveis, o carrinho, etc. etc. etc…

Aí aparece um dos principais argumentos para se saber o sexo do bebê: comprar coisas para ele. Nas lojas, tudo é repartido em duas seções, uma na qual predominam o rosa, lilás, o salmão, as estampas de oncinha e o preto (tendências modernas para meninas) e outra em que predominam os tons de azul e cinza, com super-heróis, caminhões e animais selvagens. Como se não existissem outras cores maravilhosas como amarelo, laranja, verde, marrom. Como se um menino não pudesse se vestir de rosa. Como se uma menina não pudesse usar uma camiseta de dinossauro.

Na prática, compramos muitas coisas neutras, mas também rosa e azul — um pouco de tudo.  Mesmo depois de ter nascido, quando precisamos comprar algo, não pensamos no azul; escolhemos algo simplesmente se nos agrada ou não. Por isso ele tem várias roupas coloridas. Recebeu roupas usadas de meninas — é claro que também ganha presentes “de menino”, um monte de roupas azuis, fazer o quê… No final das contas, qual o problema se o Francisco usar rosa, estampas florais, borboletas ou de coração? Essa discussão dá pano pra manga, um post só não dá conta, ainda falarei sobre isso.

Voltando à nossa experiência durante a gravidez, era interessante e gostoso viver com esse pequeno mistério. Não tínhamos expectativas ou imagens definidas de quem seria aquele bebê lá dentro. Sem nome, sem ultrassom 3D para ver como era o nariz ou a boca. Para nós, era bonito guardar em segredo a vida daquele bebê que se formava e crescia na escuridão e no calor. Como também deve ser bonito, para quem se dispõe a isso, criar a identidade do bebê, dar-lhe um nome, uma personalidade antes mesmo de nascer.