“VOCÊ DEVERIA SER MAIS FEMININA!”

ou algo do tipo; não lembro direito como a frase foi formulada. Eu escutei isso de uma conhecida, uns cinco anos atrás. Fiquei muito surpresa com o comentário. Como assim, ser mais feminina?

Ela queria dizer feminina talvez no sentido mais recorrente do termo: usar maquiagem diariamente, tratar do cabelo, vestir roupas da moda, perfume importado. Para ela, eu deveria valorizar meus atributos físicos. Ser atraente, chique. Era, coincidentemente, a sua maneira de ser feminina. Feminina como a maioria das capas de revista, as atrizes famosas, as modelos — como nos dizem que deve ser.

Fiquei meio desconcertada com essa conversa. Não dei muita trela, pouco disse a respeito. Agora pensando, já tanto tempo depois, poderia ter respondido que há muitas maneiras de ser feminina — tantas como são diferentes cada mulher deste mundo.

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Absolutamente nada contra a pessoa que se sinta bem de salto alto, escova feita e maquiagem retocada — mesmo. Só quero ter a possibilidade de encontrar minha própria maneira de ser feminina. E não precisar me sentir menos mulher que qualquer outra.

Dias atrás, comentava com uma amiga que eu gostaria de deixar meus cabelos grisalhos, ou seja, não usar tintura para retocar os fios brancos. Ao que ela diz: “claro, desde que você não fique com cara de velha”. Mas qual é o problema em parecer velha? Que mundo é esse que desvaloriza a velhice de uma mulher?

Talvez na mesma semana, ouvi outra que vale relatar: “seu filho já tem um ano de idade e você ainda não conseguiu perder essa barriga”. Essa foi f*da. Quer dizer que eu preciso ter uma barriga chapada? Pra essa, fiz cara de alface. Também fiquei me perguntando que liberdade dou axs outrxs para que me digam coisas desse tipo.

Ao nosso redor veiculam regras, muitas vezes sutis e tácitas, para definir quem somos. Desde a infância… as meninas: delicadas princesas, belas, de cabelos longos e lisos; os meninos, corajosos cavaleiros, lutadores — aquela tal polarização entre o rosa e o azul.

E bem sabemos como é duro encaixar-se no que esperam de nós. Podemos passar anos e anos da vida buscando ter o corpo que não temos. Dando pouco valor a quem somos, à nossa beleza particular, aos nossos pontos fracos e defeitos irrepetíveis.

Pode ser que eu mesma, ali cinco anos atrás, não sentisse em que dimensão construo minha feminilidade; que me sentisse um pouco à parte das mulheres que se assemelham àquele modelo que nos oferecem desde cedo, quando começamos a ouvir “você está ficando mocinha…” O tempo e a experiência da maternidade estão me ajudando nesse sentido. De toda forma, a estrada é longa e o assunto não cabe somente neste post.

ROSA OU AZUL?

é uma outra formulação para a pergunta “é menina ou menino?”; impressiona essa distinção entre cores e sexo que, para começo de conversa, não passa de uma construção cultural.

Ela tem ficado cada vez mais evidente para mim, especialmente a partir do começo da gravidez. A cada dia que passa, vou prestando mais atenção a mães, pais e crianças que conheço e vejo pela rua: como se relacionam, o que as crianças vestem, onde vivem, do que brincam, o que compram no supermercado. Muito do que vejo — meninas com seus casacos rosa, meninos voltados ao perfil “pequeno aventureiro” — atende a essa separação de gêneros.

Ainda passeando pela rua, fico alegre quando alguém me aborda, perguntando se o bebê que carrego nos braços é um menino ou menina — coisa que acontece bem frequentemente. Fica difícil dizer se o Francisco é um menino porque foge ao azul, vestindo um casaco amarelo ou uma blusa cinza; melhor assim.

Já relatei, nos posts anteriores, um pouco da nossa experiência: no primeiro dessa série, conto como e porque a gente preferiu esperar o nascimento para saber se teríamos um filho ou uma filha; no seguinte, faço algumas reflexões em torno de uma série de fotos que explora o rosa e o azul em quartos de meninas e meninos.

Nem preciso dizer que, desde que nasceu, ele já ganhou muitas roupas e presentes que seguem o azul — é o que acontece com todo menino, soa uma obviedade. Todo presente é um gesto de carinho e consideração, é claro; mas no fundo torço o nariz, ao me dar conta de que a pessoa  encontra-se limitada no momento de escolher algo para uma criança. Não me excluo dessa situação: muitas vezes sinto-me num beco sem saída, quando preciso comprar roupa ou brinquedo para uma criança.

[adendo: por que essa polarização é ruim? eis uma triste história, de um menino de 11 anos, que gosta de rosa e pôneis]

Ao começar a escrever esse post, partindo do título, lembrei-me de “Rosa e azul”, pintura de Renoir, uma das mais populares do acervo do MASP. Ainda pequena, visitando o museu, pensava: “são duas meninas, mas uma delas está usando um vestido azul!” O que se esperaria de um título como “Rosa e azul” seria o retrato de uma menina e um menino, cada um com a sua cor. Possivelmente eu continuava a pensar assim: “ah, vai ver que antigamente as cores não eram separadas como são hoje em dia…” — quem sabe!

Voltando ao início do post, estamos em meio a uma construção cultural muito polarizada entre os gêneros. Diz-se que, antes das Grandes Guerras, as cores associadas a meninos e meninas era o inverso de hoje. Aos meninos era aconselhado usar rosa, que era uma versão leve da cor vermelha, tão comum nos artefatos de guerra. O azul, cor da Virgem Maria, seria a cor para as meninas. Depois, por conta de uma estratégia de mercado, o oposto começou a ser oferecido para mães e pais.

Essa polarização entre rosa e azul já existia quando eu mesma era criança. Eu gostava de vermelho (que por acaso era a cor mais forte do uniforme do pré: camiseta branca, shorts e conga vermelhos) mas não vivíamos em condições em que eu pudesse escolher e consumir de acordo com meus gostos: as roupas e sapatos passavam dos primos grandes para mim, e depois para minha irmã e meu irmão, menores. Os brinquedos eram coletivos. Uma bicicleta foi passada do meu primo, minha prima e depois para mim, até quebrar.  Um quarto só para mim? — nunca tive. Comprava-se peças de lego simples, que serviam para montar qualquer coisa — não somente uma casa de bonecas ou um posto de gasolina, como se vê mais hoje em dia. Era muito difícil pensar em algo personalizado, ou que valesse somente para menino ou menina.

Um desenho da infância que me chamava a atenção era Cinderela, da Disney. Sabe-se lá porque motivo a cor predominante dos seus vestidos é azul, mesmo quando ela é a doméstica na casa da madrasta. Mas há uma cena, talvez a mais feliz de todo o longa, em que ela dança com o príncipe. Naquele momento, seu vestido muda de cor: passa do azul ao amarelo, ao rosa, verde… vai mudando, mudando. Talvez assinalasse que a felicidade poderia ser de qualquer cor, de todas as cores.

O PROJETO ROSA E AZUL

ou, em inglês, “The Pink and Blue Project” é uma série de fotografias da sul-coreana JeongMe Yoon. Seu trabalho ilustra bem a separação entre cores e gêneros — e como ela está relacionada a um consumo desenfreado, a uma acumulação intensa de objetos. Já comecei a falar sobre isso no post anterior.

[clique nas imagens para vê-las no site da fotógrafa, em tamanho maior]

Ela relata que o projeto partiu de sua filha, que escolhia somente roupas e brinquedos rosa. Começou a fotografar somente meninas, quando se deu conta de que seu filho, assim como tantos outros meninos, possuem brinquedos, utensílios e roupas que seguem escalas de azul, das mais escuras às mais claras.

Olhar a série de fotos, que começou em 2005 e continua aberta, dá uma certa tontura. Há crianças de todas as idades, bebês muito pequenos para terem um gosto ou autonomia para escolherem simplesmente tudo de uma só cor para si mesmos. Vemos até uma jovem garota, já meio grandinha mas que não quer nada para si que não seja rosa — e assim dá o sinal de que esses papéis fixos entre o masculino e o feminino não se limitam somente ao período da infância. Crescemos em torno de determinados limites para o que se espera de uma menina, uma mulher, e um menino, um homem. Muitas das meninas estão vestidas de princesas, como se pudéssemos ter tantas delas na vida real. Os meninos mostram seus aparelhos esportivos, de ciências, seus animais e mapas, como caçadores, exploradores ou cientistas.

Além disso, as crianças são todas fotografadas sozinhas, em seus quartos, rodeadas por seus objetos. Não porque estamos vendo filhos únicos, não é o caso. A questão é que cada um daqueles indivíduos em formação possuem um quarto para si, um espaço de construção de si mesmos. Mas eles parecem tão pequeninos face ao amontoado de aparatos, limitados pelas paredes do cômodo; quase não se vê janelas, talvez nenhuma porta indique a saída.  Estáticas, sem movimento, as crianças estão longe da natureza, cercadas: tudo ao redor delas é comprado, fabricado, confeccionado, direcionado para quem ela deve ser. As fotos ganham um ar de peça publicitária. Os objetos estão expostos como numa vitrine de loja, dentro da qual a criança está mais para um manequim ou um boneco.

Como se vê no caso bebezinho acima, todo rodeado de azul, ele nem tem a possibilidade de escolher algo que fuja a essa cor. De que maneira ele poderá libertar-se dessa imposição?

Uma amostra está nesse outro par de fotos: duas irmãs, fotografadas num espaço de tempo de três anos. Em 2006, bebês; em 2009, já grandinhas. O volume de objetos aumentou consideravelmente. A tonalidade de cores não: cada peça pertence a uma escala do lilás ao rosa. Ao que tudo indica, esse seria o ponto de partida para uma continuação da primeira série: The Pink Project II.

Pode-se argumentar: ah, mas elas gostam de rosa! Claro, admito que as crianças desenvolvam seu gosto pessoal. Mas de que maneira elas puderam experimentar e descobrir coisas diversas daquilo que lhes foi dado lá no comecinho, quando eram pequenas? Será que esse gosto pelo rosa não está respondendo a uma expectativa que pais e adultos fazem dessas meninas?

JeongMe Yoon começou um outro projeto em paralelo, “The Color Project”, que conta, segundo seu site pessoal, com apenas duas fotos até o momento: uma menina e sua fascinação pelo amarelo; um menino em seu quarto todo vermelho, incluindo a decoração da parede e cortinas. Uau, pode-se pensar: trata-se de duas crianças que conseguem fugir à dualidade rosa-azul, escolhendo para si objetos não necessariamente “masculinos” ou “femininos”.

Pode até ser. Mas continua impressionando a acumulação intensa, o consumo aparentemente sem limites. No caso da menina, boa parte daquilo que ela exibe está relacionado ao Bob Esponja, cuja principal cor é amarelo. Então, qual seria a seria o mecanismo: ela gosta de amarelo porque gosta do Bob Esponja ou gosta do Bob Esponja porque ele é amarelo? Arrisco dizer, sabendo que posso estar enganada, que o gosto partiu do personagem de desenho animado. De maneira muito patente, é construída uma relação direta entre a cor e o personagem. E, outra hipótese: a menina quer adquirir alguns dos atributos do Bob, um pouco daquele jeito espalhafatoso e nonsense. Ela não terá dificuldade em encontrar mais e mais brinquedos, livros e toda uma série de cacarecos licenciados com o Bob — enquanto continue na moda. Mesmo outros personagens de desenhos animados tem a cor amarela: Piu-piu, Pokémon, os Simpsons, aqueles inúmeros serzinhos do filme Despicable me… Já no caso do menino, pode-se supor que sua paixão, sua mania, esteja relacionada ao universo dos bombeiros, como se vê na pintura da parede — profissão frequentemente associada ao gênero masculino.

Pronto, acredito que não preciso ir muito mais longe nessa reflexão. Eu poderia me estender ainda bastante sobre essas fotografias. A gente se preocupa em não dar ao Francisco essas escolhas limitadas, que o mercado ou a prateleira das lojas define. Que ele não precise demonstrar seus gostos, desejos e habilidades somente em função do que se espera de um menino. Que a sua identidade, sua personalidade e sua felicidade não dependam de um quarto atulhado de roupas e brinquedos.

Finalizo com um exemplo do que fizemos já na prática. Francisco ainda não tem um quarto para si, mas abrimos um cantinho para ele começar a engatinhar e brincar. Escolhemos um tapete que não remetesse a algo concreto (havia tapetes lindíssimos com mapas, selva, desenho de ruas, na seção infantil) ou que tivesse uma cor dominante. Esse tapete com estampas de botões nos pareceu abstrato o suficiente. Tem várias cores bonitas e bem marcantes. Ele gosta de passar a mão nos limites entre o branco e o colorido. A estampa lembra até aquele jogo com círculos e uma roleta, em que se coloca mãos e pés na cor que a roleta indica (não lembro o nome desse jogo, quem souber me diga!). E, mesmo parecendo um brinquedo, esse tapete não está à venda na seção para crianças… Em cima dele, colocamos uma coberta laranja e uma colcha de crochê que fiz durante a gravidez (farei um post sobre ela em breve), almofadas, brinquedos, bolinhas de meia.

tastrup-teppich-kurzflor__0185525_PE337535_S4Ainda volto a falar sobre o assunto no próximo post (e quem sabe ainda depois do próximo!). Por ora, fica o meu desejo que as crianças possam ter uma infância bem colorida — e não monocromática.

É MENINA OU MENINO?

— eis uma das perguntas mais frequentes quando se anuncia uma gravidez, quando se vai comprar roupas, brinquedos ou qualquer outro presente para um bebê.

Hoje em dia, com ultrassom, nem se discute: aos três meses, já se pode identificar o sexo do bebê. Nós somos aqueles 10% que não quiseram saber; que preferiram deixar para a hora do nascimento essa descoberta. A cada ultrassom, o Marco e eu fechávamos os olhos para não ver o pintinho ou a pererequinha. A esperta da ginecologista já sabia, mas guardou o segredo para nós.

Como a gente respondia aos outros: — não sabemos! — quando perguntavam sobre o sexo, vinham muitos palpites. Olhavam meu rosto, para ver se tinha mais espinhas, se estava bonita, se meu cabelo estava sedoso. Olhavam para a barriga, para ver se era pontuda ou redonda; se o quadril estava mais largo. Até cálculos com nossas datas de nascimento fizeram.

A maior parte desses palpites estava correta: era um menino, o Francisco, lá dentro da barriga. Algumas poucas pessoas diziam que era uma menina. De toda forma, para nós, isso era indiferente. Tanto faz se menina ou menino. Para nós, era bebê, filhote, criança, sem artigo para definir.

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— Indiferente, como assim tanto faz!? Mas como vocês vão comprar as roupinhas, os móveis, o carrinho, etc. etc. etc…

Aí aparece um dos principais argumentos para se saber o sexo do bebê: comprar coisas para ele. Nas lojas, tudo é repartido em duas seções, uma na qual predominam o rosa, lilás, o salmão, as estampas de oncinha e o preto (tendências modernas para meninas) e outra em que predominam os tons de azul e cinza, com super-heróis, caminhões e animais selvagens. Como se não existissem outras cores maravilhosas como amarelo, laranja, verde, marrom. Como se um menino não pudesse se vestir de rosa. Como se uma menina não pudesse usar uma camiseta de dinossauro.

Na prática, compramos muitas coisas neutras, mas também rosa e azul — um pouco de tudo.  Mesmo depois de ter nascido, quando precisamos comprar algo, não pensamos no azul; escolhemos algo simplesmente se nos agrada ou não. Por isso ele tem várias roupas coloridas. Recebeu roupas usadas de meninas — é claro que também ganha presentes “de menino”, um monte de roupas azuis, fazer o quê… No final das contas, qual o problema se o Francisco usar rosa, estampas florais, borboletas ou de coração? Essa discussão dá pano pra manga, um post só não dá conta, ainda falarei sobre isso.

Voltando à nossa experiência durante a gravidez, era interessante e gostoso viver com esse pequeno mistério. Não tínhamos expectativas ou imagens definidas de quem seria aquele bebê lá dentro. Sem nome, sem ultrassom 3D para ver como era o nariz ou a boca. Para nós, era bonito guardar em segredo a vida daquele bebê que se formava e crescia na escuridão e no calor. Como também deve ser bonito, para quem se dispõe a isso, criar a identidade do bebê, dar-lhe um nome, uma personalidade antes mesmo de nascer.