QUAL A MÚSICA DA SUA VIDA?

essa foi a pergunta que o Marcello me fez, não sei bem como. Deve ter sido por email. A gente se conheceu rapidamente em Curitiba, num festival de música, em 2002. Não mantivemos tanto contato, a não ser por blog, ainda assim por pouco tempo. Ele era mais próximo a outros amigos. Penso que ele estava fazendo uma série de posts sobre música, publicando relatos sobre canções preferidas.

Aí que eu sabia sobre o que escrever: “Changes”, do Bowie. Era e continua sendo minha canção preferida. Não por acaso, trechos dela estão na epígrafe da dissertação de mestrado.  Durante a pós, inclusive, dei uma aula sobre “Changes” (a disiciplina era sobre autobiografias em língua francesa, e no último dia minha orientadora e eu nos demos a liberdade de falar sobre nós mesmas). Amo a ideia da mudança e da permanência: vire para si mesmo, encare-se. Amo o jogo de palavras que faz ler o começo do refrão de duas maneiras diferentes:

Turn and face the strange- ch-ch-changes

ou

Turn and face the strain… changes

Encare o estranho ou encare a distensão das mudanças.

 

Segunda-feira passada eu não quis acreditar nas notícias que pipocavam na internet: David Bowie morre, aos 69 anos, poucos dias depois de seu aniversário e do lançamento de Blackstar. Nunca fiquei tão triste com a morte de um artista. Como disse uma amiga, parece a morte de um parente distante. Meses antes, sentia-me feliz só pelo fato de Bowie estar trabalhando, criando seus discos e vídeos, olhando para nós, como no clipe de Valentine’s day.

 

Por volta de 2001, dois grandes fãs do Bowie, que trabalhavam comigo, me apresentaram sua obra dos anos 1970, que eu praticamente desconhecia. Lembremos que naquela época era demoradíssimo baixar arquivos de música, quem diria assistir vídeos como no youtube. A cada semana, eles me emprestavam um CD: o primeiro foi Hunky Dory. E assim foi:  escutando toda sua obra por ordem cronológica, passando pelos maravilhosos trabalhos dos anos 1970, conhecendo outros grandes nomes do glam rock, como Roxy Music e T. Rex, a fase berlinense, continuando até os menos apreciados discos dos anos oitenta, Never let me down e seus ótimos trabalhos dos noventa, Buddha of Suburbia, Outside (para só então depois voltar aos primeiros trabalhos, Space Oddity e The man who sold the world). Eu já tinha Earthling, de que gostava muito. No aniversário de 2002 me presentearam Heathen, que era um lançamento recente. Me mostraram livros e nos encontrávamos para assistir videoclipes. Pouco depois perdemos contato; continuei porém muito fã do Bowie. Toda amizade tem seus pontos fracos e fortes, suas contribuições, descobertas e aprendizados. Obviamente mesmo que eu não os tivesse conhecido, teria com o tempo tido contato com as músicas do Bowie. Mas acho que não teria sido da maneira especial que foi. Por isso, desse encontro com eles ganhei muito, coisa de que até hoje sou grata.

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Semana passada, me voltou à memória aquele longínquo texto sobre “Changes”. Demorei um pouco para encontrar, fui perguntar ao Marcello sobre seu antigo blog… e no fim das contas achei-o no computador, num arquivo de texto. Aí está ele, um tanto misterioso e elíptico, como eu costumava ser naqueles tempos:

Isso porque quanto mais mudamos, continuamos os mesmos, nos afastamos para chegar mais perto do ponto de partida, como fazemos numa volta ao mundo… e quantas voltas e voltas damos em torno das mesmas coisas? Pra chegar onde, a algum novo lugar necessariamente, ou àquilo que já temos em sonho?

(…)

Essa música foi gravada dez anos antes que eu nascesse, e foi aparecer pra mim quase vinte anos depois, quando alguém que nem era tão próximo de mim na época (e não é mais próximo) me emprestou Hunky Dory, e que queria me mostrar como David Bowie podia ser muito mais do que os hits dos anos 80, Outside e Earthling. Conseguiu me convencer só com esse CD. Acho que é meu preferido, até porque Changes é a primeira faixa. Uma informação paralela: Bowie a teria escrito pra Angie, quando estava grávida, segundo o Sergio, que me contou isso não faz tanto tempo.

Impressionante como desde a primeira ouvida – no som precário do Playstation que meu irmão tinha no quarto porque o CD player e o computador estavam quebrados – ela conseguiu me dizer sempre tanta coisa em pouco mais de três minutos. A primeira vez foi quando uma única coisa mudou tudo e nada restava do que preocupar comigo mesma, ou melhor, que eu tinha que me encarar, ver qual era a minha mesmo. Nada tinha que ser jogado a não ser em cima de mim. E ver como tudo é sempre muito imprevisível, muito doce ou amargo. Mesmo tentando e conseguindo superar muitas coisas, sempre conseguiu resumir o que eu sinto, por mais diferentes que as coisas estejam.

15 DE OUTUBRO, DIA DOS PROFESSORES

e, principalmente, das professoras (visto que, via de regra, essa atividade é associada ao mundo feminino) — por conta disso, veio a ideia de escrever algo, mesmo que simples, sobre escolas, aulas, lousas, aprender…

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No começo, não gostava nada de ir ao prezinho. Essa é a memória que tenho. Chorava, reclamava, não comia na hora do almoço ou na merenda. Tinha uma amiga, o nome dela era Marcela.

Mas da pré-escola tenho poucas lembranças, começando pelo fato de que aos seis anos já tinha aprendido a ler e escrever, então decidiram que eu deveria ir direto para o ensino fundamental. Assim, construí poucos vínculos no pré, diferente do que observei com minha irmã e irmão.

A primeira escola que frequentei ficava em Pinheiros, a Alfredo Bresser. Dia desses encontrei uma moça que também estudou lá. O livro de alfabetização era da Editora Ática, com folhas de papel jornal. O visual era lindíssimo, simples, com boas ilustrações. Eu folheava mil e mil vezes aquelas páginas com as primeiras sílabas. O final trazia o som do encontro consonantal -ns, com a história do menino Constantino. Era aniversário dele: — Todos diziam: Parabéns, Constantino!

Só que eu fiquei apenas um mês ou dois no Alfredo Bresser. Mudamos para a Santa Cecília. Nenhuma escola tinha vaga para mim. Então fiquei uns meses em casa, folheando o livro sozinha e aprendendo com a cartilha.

Em agosto, entrei para o Fidelino. Fiquei pulando entre uma sala e outra, não sabiam onde me encaixar. Por isso mesmo, talvez eu também não soubesse onde me encaixar. O ambiente parecia muito selvagem. Crianças pequenas, no recreio, junto com os adolescentes do colegial. Muita gritaria. Um menino puxou meu saco de moedinhas, que tinha levado para comprar algum lanche. Caíram no chão, as crianças pegaram tudo. O mesmo menino (ou outro?) sujou meu macacão amarelo com catarro. Dureza.

Aí fui descobrindo minha maneira de sobreviver a esse ambiente estranho. No meio dos livros, prestando atenção à professora, fazendo-lhe perguntas, respondendo o que ela queria, tirando boas notas. Tentando fazê-las felizes, elas que tantas vezes eram vistas como bruxas, gritando e ameaçando as crianças. Outra mulher que dava medo era dona Lourdes, a porteira, que controlava quem entrava e quem saía. Anos e anos depois de se aposentar, dona Lourdes voltou a trabalhar no Fidelino — eu já era grande e aquela senhora me parecia outra pessoa.

Havia também as diretoras e coordenadoras, símbolos máximos da autoridade. Mas o centro de tudo eram realmente quem dava as aulas, professoras e professores. Cada um tinha sua personalidade, sua figura, seus trejeitos. A partir do ginasial, quando cada professor/a cuida de sua matéria, tudo ganha mais dinamismo. Mas também a gente vai aprendendo que cada uma daquelas pessoas em frente à lousa tem seus problemas e seus defeitos.

Tornei-me professora meio de surpresa, de uma hora para a outra. Era algo que não estava em minha imaginação, mesmo que estivesse ali, latente, essa simpatia pelo trabalho de dar aulas. Eu aproveitava muito das minhas lembranças de aulas. Inspirava-me diretamente naquilo que eu gostava. Por exemplo: um professor que dizia “não sei” quando lhe faziam uma pergunta; dias depois, ele pesquisava e trazia a resposta. Ou começar a aula com um simples ritual: cumprimentar a todo mundo, perguntar “que dia é hoje?” e escrever a data na lousa.

Foram uns quatro anos preparando aulas. Agora, volto a ser aluna, novamente. Esperando, quem sabe, que eu volte ao outro lado da sala…

ALGUMAS RECOMENDAÇÕES PARA VOCÊ MELHORAR SEU APRENDIZADO EM FRANCÊS (E EM OUTRAS LÍNGUAS ESTRANGEIRAS)

é o título de um texto que traduzi para meus alunos de francês. Era o apêndice de um livro sobre estratégias de aprendizado, uma lista de dicas muito simples e ao mesmo tempo importantes.

Normalmente, no primeiro dia de aula eu apresentava e lia com as novas turmas. A primeira aula era o momento de me apresentar e perguntar a cada pessoa na sala a sua razão de estar ali. Achava super especial esse primeiro contato, esse encontro. Tão especial quanto eram as despedidas de final de semestre, quando se fechava um ciclo. Tenho saudades da época em que era professora. Foi um tempo de trabalho muito intensivo, noites mal dormidas, mas também de belos encontros, risadas e ricas trocas.

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Voltando ao texto, ele estava meio perdido no meu blog velho e acreditei que ele merece ser republicado. Revisitá-lo agora que eu estou no meio de meu aprendizado de alemão também me incentiva a mim mesma a procurar maneiras variadas de me apropriar dessa língua tão difícil e fascinante — como tantas e tantas outras.

estratégia 1
Tenha seu aprendizado em mãos

Cada um aprende uma língua de maneiras diferentes. É preciso encontrar as técnicas que funcionam melhor para você.

Sugestões:
– Tente diferentes formas de aprender.
– Pergunte aos outros como eles conseguem aprender.
– Continue a usar as técnicas que parecem eficazes.

estratégia 2
Organize-se

O aprendizado de uma língua depende de um certo grau de organização da matéria: a pronúncia das palavras, o sentido das palavras e das frases, a forma das frases, o que implica igualmente numa organização do próprio aprendizado.

Sugestões
– Organize a agenda de modo a poder estudar fora do horário das aulas.
– Tente aprender alguma coisa nova todos os dias, fora das aulas.

estratégia 3
Seja criativo

Para aprender uma nova língua, você deve se aplicar pessoalmente. O francês vai cedo ou tarde “fazer parte de você”. Para isso, é preciso praticar.

Sugestões:
– Tente encontrar a regra que rege as frases que você ouve.
– Tente utilizar as palavras novas em novos contextos. Se você errar, pergunte por quê.
– “Brinque” com a língua.

estratégia 4
Crie suas próprias ocasiões para praticar

Para aprender uma língua, é preciso ser ativo, é preciso praticar a língua. Logo, é preciso encontrar ocasiões para falar, escutar, ler e até mesmo escrever.

Sugestões:
– Faça todas as atividades em sala de aula. Responda para si mesmo todas as questões que o professor faz a outros alunos. Observe os colegas de sala e verifique as respostas deles.
– Não tenha medo de fazer perguntas e de falar com pessoas que falam francês.
– Escute rádio em francês, assista televisão em francês, leia jornal em francês.
– A melhor maneira de praticar o francês é você falar francês.

estratégia 5
Aprenda a viver com a incerteza

Quando aprende-se uma língua, é preciso viver com a ambigüidade, com o inesperado e o incompreendido.

Sugestões:
– Não se apóie muito no dicionário. Ao ler, tente compreender o sentido geral lendo rapidamente o texto inteiro diversas vezes em vez de consultar o dicionário ao achar uma palavra que você não entende.
– Mantenha a calma! Se você não entende o que te dizem, peça para repetir, para falar mais devagar, para reformular. Não tente entender cada uma das palavras. Adivinhe!

estratégia 6
Utilize técnicas para melhorar sua memória

Sugestões:
– Agrupe palavras que rimam ou que começam com a mesma sílaba.
– Faça uma imagem mental do sentido das palavras.
– Tente associar uma nova palavra a outras que você já conhece.
– Tente agrupar palavras de acordo com sua função, categoria, etc.

estratégia 7
Não tenha medo de errar

Errar é natural. Os erros podem ser úteis se você os aproveitar para melhorar seu aprendizado.

Sugestões:
– Não espere poder dizer tudo corretamente antes de falar e de tudo entender antes de ler. Corra riscos! Pratique a língua!
– Tente perceber a diferença entre os tipos de erro que você comete: se são erros que estão de acordo com o sistema da língua (ao se dizer “uma menino”, há só uma questão de gênero inadequado) ou se são frases que fogem ao sistema (nenhum falante de português diria “menino um” no lugar de “um menino”, por exemplo)
– Tente entender a origem dos seus erros.
– Assegure-se que você entende as correções do seu professor.
– Tente julgar a relativa importância dos seus erros.
– Tente determinar quais erros mais incomodam seus interlocutores.

estratégia 8
Use seus conhecimentos em línguas

Você conhece ao menos uma língua. Todas as línguas se assemelham até certo ponto. Você pode então utilizar (conscientemente) seus conhecimentos em línguas para ajudar no aprendizado do francês.

Sugestões:
– Tente encontrar pontos comuns entre sua língua materna ou outras línguas que você conhece e o francês, no plano da pronúncia, da forma e do sentido.
– Tenha consciência das diferenças entre o francês e sua língua materna, ou outras línguas que você conhece.
– As expressões idiomáticas raramente têm o mesmo sentido e geralmente não se traduzem literalmente.

estratégia 9
Leve em conta o contexto

O sentido de uma palavra ou expressão é quase sempre determinado pelo contexto do enunciado no qual ele se encontra. É preciso então fazer uso do contexto para adivinhar o sentido da mensagem. É preciso estabelecer ligações entre as palavras, os sintagmas, as frases de uma conversa ou de um texto para compreendê-las melhor.

Sugestões:
– Preste atenção às relações entre as palavras.
– Utilize o sentido geral do enunciado para adivinhar o sentido preciso de uma expressão.
– Utilize o sentido geral de uma conversa e de seu contexto para adivinhar o sentido de uma frase.
– Recorra ao contexto social para adivinhar o sentido de certas palavras.

estratégia 10
Aprenda a adivinhar de maneira inteligente

Quando aprendemos uma língua, é importante decodificar não somente a mensagem mas também as intenções de quem fala. Para isso, é preciso utilizar seus conhecimentos do mundo e do que sabemos da comunicação verbal de maneira geral.

Sugestões:
– Tente sempre buscar o contexto geral da mensagem: o lugar, as pessoas, etc.
– Focalize suas atenções às coisas essenciais.
– Use probabilidades contextuais.
– Considere que o “aqui e agora” é pertinente.
– Leve em consideração que algumas de suas hipóteses estejam incorretas.

estratégia 11
Aprenda de cor algumas expressões sem as analisar

Em toda língua existem expressões idiomáticas que resistem a uma análise detalhada. É preciso aprendê-las globalmente sem tentar analisar suas partes.

Sugestões:
– Utilize o contexto no qual você escutou ou viu a expressão pela primeira vez para tirar o sentido geral.
– Não tenha medo de utilizar essas expressões e verificar a reação de seus interlocutores.

estratégia 12
Aprenda algumas rotinas e fórmulas

Toda língua tem suas maneiras de começar e terminar conversas, fórmulas para encorajar o interlocutor para continuar a falar, para interromper ou ainda fórmulas para se desculpar, recusar, oferecer ajuda, etc.

Sugestões:
– Aprenda rotinas para dar início e terminar conversas, para saudar e se despedir, para fazer e atender uma ligação telefônica.
– Aprenda fórmulas qui indicam que você escutou, que você entendeu (ou que você não entendeu).
– Aprenda fórmulas que permitam exprimir suas reações, indicar que você está de acordo ou não está de acordo.
– Aprenda a motivar o interlocutor aprendendo fórmulas que o incitem a reagir.
– Aprenda a “administrar” conversas aprendendo fórmulas rituais como: “sabe?”, “não é?”, “né?”, etc.

estratégia 13
Aprenda a utilizar diferentes registros

A maneira com que uma coisa é dita é muitas vezes mais importante do o que é propriamente dito. Toda língua utiliza diferentes registros de acordo com a situação, de acordo com o assunto tratado, etc. Quando aprendemos uma segunda língua, essas variações não são sempre evidentes e temos tendência a nos limitarmos a formas o mais neutras possível.

Sugestões:
– Preste atenção à maneira com a qual o professor se dirige a você. Ele usa o pronome tu ou vós? Ele usa o seu prenome ou seu sobrenome?
– Tente se sensibilizar a variações em geral. Quais fatores interferem? Sexo, idade, condição social, lugar, assunto da conversa?
– Tente reconhecer diversas maneiras de dizer uma mesma coisa.

Traduzido e adaptado de
Cyr, Paul. Stratégies d’apprentissage.
por Ana Amelia Coelho Pace

400 POSTS

aqui no ovonovo. Este aqui é o número 400. Vi o número no painel de administração do blog e achei que seria a ocasião para escrever a respeito.

Abri o primeiro blog, o colher, entre 2001 e 2002, bem no comecinho. Foi uma ferramenta maravilhosa para quem queria escrever despreocupadamente, sem precisar aprender a fundo a linguagem de construção de sites — o velho html. Alguns amigxs também foram abrindo seus blogs. A gente ia comentando, animadamente, os posts uns dxs outrxs, fazendo piadas internas. Surgiam visitantes que iam se habituando à turma. Era como se cada blog fosse uma sala de visitas — decorada de acordo com o gosto dx anfitriã-ão, onde se conversava, ouvia-se uma música, comentava-se um livro ou filme… Era um pouco do que hoje cumprem em parte as redes sociais.

Participei pouco de blogs coletivos, mesmo tendo simpatia pela ideia eles não tiveram grande fôlego. O mais bonito deles foi o breve alheios alhures.

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Houve períodos em que eu escrevia febrilmente, todos os dias. Era uma espécie de disciplina que me coloquei a mim. Manter a regularidade me ajudou muito. Como um esporte que depende de prática constante, a escrita diária me mantinha em forma para juntar palavras, formular ideias, fazer conexões. Pela escrita consigo enxergar melhor a mim mesma. Em outras palavras, escrever é uma necessidade dramática.

Teve momentos em que decidi fazer uma pausa. Precisava dessa distância. Um blog aberto é lido por inúmeras pessoas, conhecidas ou não. Esse tipo de audiência anônima me agrada e até me estimula, mas há momentos em que é melhor o silêncio.

Mesmo assim amo falar e escrever, isso faz parte da minha natureza e nada melhor do que cultivar esse meu gosto. Sinto-me feliz de transmitir o que vou aprendendo, vendo e sentindo vida afora. Releio os posts passados, recordo, reflito. Amo igualmente descobrir e acompanhar outros blogs, seja de culinária, vida materna ou astrologia. Sou do tipo que comenta pouco… talvez precisaria participar mais nos textos de outras pessoas, assim como participar de projetos coletivos de escrita. Ficam essas perspectivas nesse marco de hoje, 400, esse belo número.

DIA OITO DE JULHO

de 1981 eu nasci. Mas fui saber disso muitos anos depois. Minha mãe me mostrou o documento da maternidade com a data. Até então, meu aniversário era 9 de julho.

Como assim? Eu nasci no dia 8. Mas fui registrada com outra data de nascimento. Em todos os meus documentos consta o dia 9.

Durante muito tempo, deixei essa historinha em segredo. Mantive o dia 9 para comemorar. Poucas pessoas mais próximas sabiam do dia 8 e temia que elas revelassem a verdade para todo mundo… isso porque eu preferia o dia 9 ao 8. Achava numericamente mais simpático.

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Uma vez fizeram meu mapa astral e nem me dei conta que informei a data errada! Deveria ter dito dia 8 mas automaticamente disse: dia 9/7/81. Um mapa com um dia de diferença não teria um resultado condizente com a realidade. Estaria mentindo para mim.

Aí fui me dando conta que faz diferença um dia ou outro. Os dois dias tem seu valor e significado, à sua maneira. Não existem separadamente. Cabe a mim conciliá-las, me alegrar e viver com elas.

NA FRENTE DO ESPELHO

eu ficava me olhando, minutos a fio. Devia ter uns sete anos. Eu já ia à escola, isso lembro bem. Pensando hoje, era como se eu me auto-hipnotizasse. Digo isso porque me vinham algumas perguntas à mente. A principal delas era:

Quem é essa menina que eu vejo aqui na minha frente?

É a Ana Amelia? Quem é ela? 

Ela é a menina que leva uma sacola das Pernambucanas para a escola, amarela e preta, com uns desenhos bonitos. Lá dentro tem uma pasta de elástico verde-escuro, com as folhas de atividades.

A Ana Amelia está usando uma blusa de lã, feita pela vovó, dona Otília, com listras vermelhas e azuis. O cabelo está penteado, com uma risca.

Mas quem é ela?

E assim continuavam as perguntas. Eu me perguntava também: quem está fazendo todas essas perguntas? É outra Ana Amelia? Outra menina? Quem é?

EU ANDAVA DE BICICLETA

aos domingos no Minhocão, quando eu tinha uns 8 anos. Durante o mandato da Erundina, em 1989, o viaduto começou a ser interditado aos carros uma vez por semana. Assim, tornou-se uma opção de lazer dominical. De manhã, depois da missa, eu passava no ônibus-biblioteca que estacionava no largo Santa Cecília, acompanhava meu pai à feira. O passeio de bicicleta devia acontecer depois de tudo isso, provavelmente à tarde.

Gostava de sentir o vento batendo no rosto, a relativa solidão de percorrer o viaduto de ponta a ponta em poucos minutos. Uma vez, na descida, me descontrolei e caí, bati forte a cabeça. No mais, não me arriscava a andar de bicicleta nas ruas movimentadas. O Minhocão era o espaço ideal para meus passeios ciclísticos: amplo, plano, sem semáforo ou cruzamentos, poucas curvas e inclinações.

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A bicicleta cor-de-vinho pertencia, anos antes, à minha prima. Ela cresceu e então a bicicleta ficou sendo minha, somente por um curto tempo. Eu também cresci e a bicicleta ficou pequena demais. Depois dela, não tive mais nenhuma outra. Fui levando outro estilo de vida, mais sedentário. Muito raramente ia ao parque Ibirapuera, onde era possível alugar uma bici. São Paulo também era uma cidade pouco acolhedora para ciclistas. Meu irmão e uma amiga cruzavam as ruas, indo para lá e para cá sobre duas rodas. Eu olhava para eles dois com admiração: — “que coragem enfrentar as subidas e descidas e o trânsito cruel da cidade!”

Felizmente, São Paulo está mudando nesse aspecto. Minhas últimas viagens para lá me mostraram mais e mais gente percorrendo as ruas com a segurança das ciclovias. Tanto melhor.

Quando estive em Lyon, já faz uns sete anos, o cara que me hospedou me ofereceu uma bicicleta. Recusei, disse que não me lembrava mais como andar. Em vez de pedalar, pegamos metrô para ir a uma festa, e voltamos a pé, quilômetros e quilômetros. Se eu era meio reticente quanto à bici, pelo menos me entusiasmo por longas caminhadas.

Faz uns quatro anos, me emprestaram uma bicicleta. O marido, então namorado, amante de ciclismo, queria passear comigo. Eu lhe disse: — preciso reaprender a andar! Escolhemos uma parte tranquila da rua. Não foi tão difícil quanto imaginava. Pedalava lentamente. Aos poucos fui me entregando ao seu ritmo metálico, seu equilíbrio em movimento. Que maravilha! As sensações dos passeios no Minhocão retornaram.

Resolvi arriscar e partir para o passeio: sentia-me pronta. Acelerei, tinha uma curva… ops! Perdi os pés do pedal. Estava sem o controle da bicicleta. Na rua, outras pessoas de bicicleta, no sentido contrário; carros estacionados. Eu a toda velocidade, com medo. Apoiei-me num furgão vermelho que estava parado à direita. Caí no chão.

Resultado: joelho esquerdo bem machucado. Passou um dias e precisei ir ao hospital, porque doía muito. Examinaram. Tomei vacina antitetânica. E desde então, nenhum retorno às duas rodas.

O Francisco é muito interessado por bicicleta. O pai vai todo dia trabalhar com sua magrela. Próximo ano, quem sabe, estaremos os dois, mãe e filho, (re)aprendendo a pedalar.

LIMPAR O PRÓPRIO BUMBUM

foi a experiência que me marcou a entrada na pré-escola. Antes, em casa, sempre que eu precisava fazer cocô, chamava mamãe ou vovó. Elas me ajudavam a me limpar, eu tentando mas sem confiança de executar a tarefa.

Lembro que nas primeiras vezes em que aconteceu de fazer cocô no prezinho, eu me dirigia ao banheiro sozinha. Quando precisava da ajuda, gritava: — Tia, vem me limpar!

Talvez uma ou duas vezes a professora veio ao meu encontro. Só não recordo se ela me disse que aquilo normalmente não se faz — que na escola cada criança deve cuidar de si mesma para usar o papel higiênico no banheiro.

Enfim, passados os primeiros momentos de auxílio, aconteceu que eu fui evacuar e, como das outras vezes, chamei pela tia. Gritei uma vez, duas, três. Até que eu me dei conta, pela ausência, de que eu deveria em encarregar da minha própria limpeza. E assim foi.

DEZ ANOS ATRÁS, A FRANÇA

era o destino da minha primeira viagem para fora do Brasil. Uma colega do trabalho e eu fomos fazer um curso para aprimorar conhecimentos em biblioteconomia. Assim, não se tratava de uma viagem de férias, mas a trabalho. A maior parte dos dias, passávamos em sala de aula ou visitando bibliotecas. O grupo era formado por gente de toda parte do mundo: do Brasil passando por Filipinas, Quirguistão, Vietnã, Jordânia, Yêmen, Chade, Lituânia, Argélia, Alemanha. Bem interessante ter contato com jovens de lugares tão diferentes.

Ficamos um pouco em Paris e depois um mês em Marselha. A cidade era linda ao mesmo tempo em que espantava, por sua viva mistura de povos e línguas; as pessoas falavam da criminalidade e da máfia. Desconhecidos nos abordavam no meio da rua. Garçons nos restaurantes não nos tratavam bem. Ainda assim, tudo era novidade e valia a pena se aventurar pelas ruas do centro, pelas ladeiras dos bairros próximos. Engraçado se deparar com o sotaque típico do sul da França, que não se escutava tanto nos cursos de língua, centrado no padrão parisiense. A paisagem, igualmente, se diferenciava.

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As cores do Mediterrâneo, tons de azul e verde; a terra bege, as flores e plantas  –tudo vivendo com toda a força o tempo quente… Essa é uma das poucas fotos que me sobraram da viagem.

Era verão: depois das aulas tínhamos tempo de sol para perambular pela cidade. Os fins de semana eram a oportunidade para pequenas excursões: Cassis, Aix-en-Provence, ilhas na região: a prisão de Conde de Monte Cristo. Numa delas, encontramos ruínas romanas.

Curtimos a Fête de la Musique, até tarde da noite. Era novo pra mim ver toda uma cidade fora de casa, na rua, ao som de música (algo parecido em São Paulo seria a Virada Cultural?). Festinhas de bairro também aconteciam. Visitamos a família de um amigo da nossa chefe. Lá, conversei com um garotinho que aprendia provençal na escola — e me surpreendia com a semelhança com a língua portuguesa.

Eu queria experimentar de tudo — principalmente os sabores de iogurte, os biscoitos, pães, geleias e chocolates. Voltei para casa com 5 quilos a mais! A mala, abarotada de souvenirs, livros, herbes de Provence, sabonetes (sobretudo savon de Marseille), relógio, roupas, cartões postais… Era como se eu quisesse preservar as cores, cheiros e sabores para além daqueles dias. Fotografei inúmeros rolos de filme — e comprei minha primeira câmera digital, que me acompanhou por anos.

Fiz um diário da viagem: anotava as experiências e sonhos; desenhava. Dia a dia, telefonava para casa e o namorado.

Depois de quatro semanas em Marseille, passamos poucos dias em Poitiers. Lá, nos hospedou uma família francesa, que nos levou conhecer igrejas românicas e nos ofereceu refeições maravilhosas. Novamente interessante, como contraponto — Poitiers nublada em confronto a Marselha dourada de sol.

Em Paris ficamos pouco tempo mas fizemos o roteiro básico, torre Eiffel, bateau mouche, Montmartre, Père Lachaise, museu d’Orsay. Eu queria muito ir a Auvers-sur-Oise, onde está enterrado Van Gogh. Mas chegamos lá no fim do dia e já estava tudo fechado. O mesmo aconteceu em Versailles: nos perdemos no caminho e passamos da hora.

Eu poderia fazer vários posts sobre essa viagem… Mas vale ainda dizer que, além dos passeios, o importante da viagem foi experimentar viver fora de casa, conviver com outras pessoas, com as diferenças, as opiniões divergentes. Até então, não havia passado por algo assim: estar longe da família e dos amigos. Eu me achava muito independente mas me surpreendi ao chorar quando me despedi da minha mãe.

Também me surpreendo com a marca que a França deixou em mim. Naquela época, eu estudava francês sem uma especial fascinação. Foi uma escolha necessária durante o curso de Letras. Eu já falava inglês e a cultura francesa me parecia interessante — mas não mais do que a italiana ou a alemã, por exemplo (na verdade, quando comecei o curso de Letras minha intenção era estudar grego antigo… história para outro momento). Aos poucos me engajei tanto que trabalhava numa biblioteca francesa, anos depois dava aula e meu mestrado acabou sendo em literatura francesa — coisas que não vislumbrava de início.

Voltando à França, relembro com alegria dos passeios que fiz por lá. E me realegro ainda ao voltar a fazer novamente outro passeio lá, dez anos depois do primeiro.

ERA UMA FESTA DE HALLOWEEN

numa república. Conhecia pouca gente por lá. Logo me enturmei e estava papeando numa rodinha. O tempo passa e quando me dei conta estava sozinha conversando com um cara que fazia geografia. Bonitinho, simpático, falador. Ele pesquisava sobre pedestres. Achei demais o tema — era algo que eu mesma gostaria de estudar!

À conversa se seguiram beijos e abraços. No fim da festa, queria ir embora comigo. Morava bem longe, com os pais; precisava esperar o metrô, depois pegar ônibus… Eu estava a poucos minutos a pé de casa. O que fazer?

Resolvi levá-lo para passear nas redondezas. Augusta, Paulista, Brigadeiro, Bixiga. Percurso improvisado, passos calmos, pausas aqui e ali. Quando o sol já estava chegando, tomamos um café perto da Câmara. Próximo ao Anhangabaú nos despedimos com telefones trocados — ele, cheio de promessas de reencontro, dizia-se fascinado com a minha ideia de ficar perambulando pelas ruas do centro.

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Mas talvez não tenha sido assim tão maravilhoso como ele mesmo repetia. Convidei-o outras vezes, porém havia sempre alguma desculpa: — “é fim de semestre, deixa pra depois; estou super atarefado”… Tempos depois descobri que ele me contou coisas que não eram verdade. E fui percebendo que os elogios que recebi poderiam ter sido só um artifício de paquera — e que não eram de coração.

E assim foi essa pequena história da moça que quis se vestir de bruxa e levou um moço de longe para passear pelos labirintos de um território que ela conhecia tão bem. Foi passear, procurando quem tivesse disposição para acompanhar e descobrir novas estradas.