juntamos dois passeios com a mesma temática hoje: museu Lasar Segall, com a exposição de Hildegard Rosenthal e Horacio Coppola e exibição de São Paulo sinfonia da metrópole no Sesc, com acompanhamento musical ao vivo.
O olhar atento tentando descobrir que cantos da cidade a imagem conseguiu guardar. A sedução dos anos 20-30-40-50… tudo o que seja suficientemente passado. Os prédios em construção se levantando em todo canto, os carros enchendo as ruas, o amontoado de gente que não cabe na calçada. Será mesmo muito diferente de hoje?
Mas porque lembrei dele junto com a Lúcia hoje, musiquinha difícil de cantar. Fui procurar no youtube e achei essa versão simpática, gravada num lugar que sempre imaginei deveria ser filmado mesmo: o interior do prédio da Engenharia Hidráulica, na USP. Fica em frente do conjunto da Psicologia, perto da raia, e ali no meio das árvores ninguém percebe que dentro há um cenário de filme.
Só conheci esse prédio de acesso restrito porque ali ficavam as instalações provisórias da Rádio USP, engraçado, na mesma época em que o vídeo acima foi feito, março de 2008. Experiência e tanto de Ciço e eu. Ainda lembro do cheiro e do silêncio-barulho desse espaço enorme cheio de canos. Demais.
Substantivo masculino. Do francês, palavra formada por en + jeu; logo, é possível, em alguns casos, traduzir-se enjeu por em jogo.
O Dictionnaire du moyen français atesta que o termo em sua origem designa o dinheiro que se colocava numa aposta, num jogo de dados, por exemplo; a aposta. Essa acepção continua em uso no francês de hoje em dia: aquilo que colocamos em jogo no momento em que ele começa, e que ficará com o ganhador.
A palavra ganhou então com o passar do tempo sentidos mais amplos. Por extensão, designa aquilo que se pode ganhar ou perder numa competição, empreendimento, debate. Tudo aquilo que colocamos em risco ou que esperamos obter.
Encontra-se frequentemente enjeu na imprensa, no discurso acadêmico, etc. Por exemplo: “dites quel est l’enjeu théorique du titre ‘Le langage et l’expérience humaine’, de Benveniste…”, questão com a qual me deparei faz pouco tempo. A presença de enjeu no enunciado me intrigou à beça.
[As revistas espalhadas, imagine que você está numa banca de jornais, você olha as capas; que ideias elas transmitem: tipo, público, frequência.]
Pensei em mil coisas (uma reportagem com meu vô na gazeta de Pinheiros, foto da minha mãe numa banca, um desenho de Sempé…) antes de me dar conta de que isso era muito provavelmente um pedaço de atividade para a aula de francês, que eu só vislumbrei mas não coloquei em prática.
que eu me lembre, é o primeiro sonho que tenho com meu objeto de pesquisa.
Falávamos por telefone. Eu podia ver onde e como ele estava. A grande questão é que ele mudava de rosto enquanto a gente conversava. Também em um momento passávamos do francês para o português, como se não houvesse diferença entre uma língua e outra.
Ele me pergunta se eu já estava a caminho da França, para encontrar com ele. Informações desencontradas mas que estavam encontrando um caminho.
Também sonhei com um carnaval de rua, com colegas da escola e gente vomitando.
Do francês, do verbo contraindre: que exerce uma ação contrária a; forçar alguém a agir contra a vontade; obrigar, empurrar, controlar, condenar, reduzir.
Coerção, força, violência, intimidação, ameaça, pressão. Coisa que impede, que coloca obstáculo. Regra, disciplina, lei. Opressão.
[adaptado do dicionário le Petit Robert]
O dicionário le Petit Robert elenca ainda duas outras acepções para contrainte, uma para o mundo jurídico, outra para a física e geofísica. Mas não diz nada do emprego da contrainte na literatura (francesa principalmente) e nas artes.
Usar contrainte na criação artísitica é trabalhar sob regras e limitações, impostas arbitrariamente. Essas limitações podem ser dos mais variados tipos: na redação de um texto, pode-se limitar o número de palavras, pode-se proibir o uso de um dado tempo verbal ou mesmo de uma letra do alfabeto. Um exemplo: o escritor Georges Perec escreveu um romance sem usar uma única vez a letra “E”, a mais frequente no francês: La disparition.
Enquanto escrevia o texto abaixo me perguntava se eu estava fazendo sob uma limitação. E acho que sim, talvez mais de uma. Escrevendo sobre limitação sob limitações.
(de estilo? sob contrainte?) em torno de um tema que me obseda e que tem tomado conta de conversas:
DAS LIMITAÇÕES
Somos seres limitados que têm consciência disso – e talvez os únicos que tentam lutar contra algumas limitações ao mesmo tempo em que criam outras. Tendem a aceitar muito bem as próprias limitações (prova de bom-senso e respeito ao próximo), mas pouco provavelmente aceitam tão bem as limitações (escolhas) dos outros. Com isso, podem pregar uma liberdade que tiraniza: – exercício de dar nomes às coisas?
Coreografar os mínimos movimentos cotidianos, arquitetar todos os planos em espaços milimetricamente simétricos, ou quando não, ao menos demarcá-los muito bem, para que neles as cores falem por si mesmas, que os olhares cúmplices digam tanto quanto as velhas canções. Mostrar que as coisas não são naturais.
“O que resta do tempo” tem muito do humor silencioso de Buster Keaton ou de Jacques Tati (fiquei com medo de essa minha impressão durante o filme ser um lugar-comum), tanto pelo vazio-cheio do cotidiano, como pela própria presença deles frente às câmeras. Eles circulam por entre os outros personagens menos para agir do que para multiplicar e desequilibrar o olhar.
Elia Suleiman traz a história de seu pai e de sua mãe, mais do que a história de seu retorno à casa; e é menos uma tentativa de contar a ocupação do que simplesmente contá-la como se pode, com o silêncio resignado e resistente, com esmero em criar coisas belas. De um mesmo belo de “Paradise now”, outro palestino.
E mesmo assim, pensando nas experiências que são os filmes, não consigo evitar: adoro essas fotos de Cannes, que mostram talvez a razão de ser do cinema.
A gente tenta olhar nos sonhos coisas que nos façam sentido, colocamos nossa linguagem a serviço deles. Do mesmo jeito, acreditamos que nossa vida dá alimento aos sonhos. Eu me preocupo com as aulas, logo, tenho um pesadelo de uma aula fracassada.
Hoje durante uma consulta me lembrei de um sonho e me preocupei com o conteúdo: eu estava toda fraturada. Pés e mãos principalmente. Marcas roxas, dificuldade de locomoção. Sem me perguntar o que tinha me acontecido para eu estar daquele jeito, eu continuava a fazer as coisas, a andar, lamentando um pouquinho a limitação.
Posso ter me preocupado com um fantasma, uma imagem que me cerca, a da fratura. Mas por que o conteúdo mais óbvio do sonho seria o significado que ele carrega? E por que haveria algo no sonho a ser desvendado, uma resposta a ser decifrada?
também visto agora em janeiro, assim como “Cidadão Boilesen”. Penso que ambos mereciam ser tratados juntos, pelas suas semelhanças como no que se distinguem, mas já escrevi sobre Boilesen em separado.
“Crítico” também é um trabalho de anos de pesquisa e coleta de material, também dirigido por alguém que manteve trabalhos e projetos paralelos ao documentário – Kleber Mendonça Filho, que além de realizador é crítico.
Não sendo as únicas ocupações de seus realizadores (o que não é negativo), os dois documentários se mostram como frutos de esforço e de uma grande vontade de mostrar (ou mesmo de contruir?) o objeto de suas preocupações. Em “Boilesen”, o que ainda não investigamos suficientemente sobre a nossa própria história; em “Crítico”, perguntar a quem faz cinema e quem escreve sobre cinema o que é falar sobre cinema.
Kleber fez algo muito mais simples do que Litewsky: pegou os aparelhos que estavam à mão e foi aproveitando as oportunidades que apareceram; soube recolher o que estava à disposição, o que estava ao seu alcance. Ao menos é o que parece. Daí, dessa aparente pouca ambição, ele consegue falar com todo mundo – algo que à sua maneira também aconteceu em “Boilesen”. Kleber fala com diretores e críticos de jornal das mais diferentes origens e orientações… Consegue juntar os produtores dos irmãos Farelly e Aki Kaurismaki (a “entrevista” das mais sintéticas e poderosas), de Carlos Saura a Samuel L. Jackson. De todos parece ter conseguido confiança: os relatos são todos simples e sinceros, como conversas entre companheiros de trabalho, ou entre amigos, recortados, organizados tematicamente, entremeados por imagens mudas em movimento (disponíveis em domínio público): o cinema no que teria de mais técnico (ou algo tão técnico quanto a realização e a crítica?) – o fenômeno físico que conseguimos captar com nossos olhos, a mecânica dos corpos e das máquinas.
O final reserva uma pergunta que ia me fazendo ao longo do filme: onde está o Kleber, falando também, como os outros, sobre o que faz, ele tanto crítico como realizador? A rápida participação de Rodrigo Santoro traz a pergunta – algo como “onde está você?” – e a deixa em aberto.
Eu, como me dedico também a um trabalho crítico, mas concentrado em literatura, sempre me faço perguntas como essa (“onde está o pesquisador?”), tanto no que escrevo como no que leio dos outros. A presença do sujeito no que faz, no caso dos filmes, já disse isso em outro lugar (e essa ideia não é minha), está nos nomes próprios, que nos filmes vão se desenrolando nos créditos – e são bem mais numerosos do que num livro, por exemplo. A autoria é um trabalho dissolvido em mais de um indivíduo.
Nesse sentido, que documentário mais autoral do que “Crítico”, feito por Kleber e poucos parceiros, com poucos recursos e ao longo de anos de trabalho – mas que ao mesmo tempo reúne 70 vozes de horizontes diferentes?
Fora tudo isso, vejo que faltou pensar na crítica de cinema feita na academia e mesmo no público, na crítica não profissional. Quanto à relação entre a formação de cineastas na universidade, eu me pergunto, não sei: há uma formação universitária para críticos de cinema? Aconteceria o contrário de um curso de Letras, que visa, entre outras coisas, formar críticos literários mas não forma necessariamente escritores? Inevitavelmente pensei como seria instigante pensar num documentário sobre crítica literária…