QUAL A MÚSICA DA SUA VIDA?

essa foi a pergunta que o Marcello me fez, não sei bem como. Deve ter sido por email. A gente se conheceu rapidamente em Curitiba, num festival de música, em 2002. Não mantivemos tanto contato, a não ser por blog, ainda assim por pouco tempo. Ele era mais próximo a outros amigos. Penso que ele estava fazendo uma série de posts sobre música, publicando relatos sobre canções preferidas.

Aí que eu sabia sobre o que escrever: “Changes”, do Bowie. Era e continua sendo minha canção preferida. Não por acaso, trechos dela estão na epígrafe da dissertação de mestrado.  Durante a pós, inclusive, dei uma aula sobre “Changes” (a disiciplina era sobre autobiografias em língua francesa, e no último dia minha orientadora e eu nos demos a liberdade de falar sobre nós mesmas). Amo a ideia da mudança e da permanência: vire para si mesmo, encare-se. Amo o jogo de palavras que faz ler o começo do refrão de duas maneiras diferentes:

Turn and face the strange- ch-ch-changes

ou

Turn and face the strain… changes

Encare o estranho ou encare a distensão das mudanças.

 

Segunda-feira passada eu não quis acreditar nas notícias que pipocavam na internet: David Bowie morre, aos 69 anos, poucos dias depois de seu aniversário e do lançamento de Blackstar. Nunca fiquei tão triste com a morte de um artista. Como disse uma amiga, parece a morte de um parente distante. Meses antes, sentia-me feliz só pelo fato de Bowie estar trabalhando, criando seus discos e vídeos, olhando para nós, como no clipe de Valentine’s day.

 

Por volta de 2001, dois grandes fãs do Bowie, que trabalhavam comigo, me apresentaram sua obra dos anos 1970, que eu praticamente desconhecia. Lembremos que naquela época era demoradíssimo baixar arquivos de música, quem diria assistir vídeos como no youtube. A cada semana, eles me emprestavam um CD: o primeiro foi Hunky Dory. E assim foi:  escutando toda sua obra por ordem cronológica, passando pelos maravilhosos trabalhos dos anos 1970, conhecendo outros grandes nomes do glam rock, como Roxy Music e T. Rex, a fase berlinense, continuando até os menos apreciados discos dos anos oitenta, Never let me down e seus ótimos trabalhos dos noventa, Buddha of Suburbia, Outside (para só então depois voltar aos primeiros trabalhos, Space Oddity e The man who sold the world). Eu já tinha Earthling, de que gostava muito. No aniversário de 2002 me presentearam Heathen, que era um lançamento recente. Me mostraram livros e nos encontrávamos para assistir videoclipes. Pouco depois perdemos contato; continuei porém muito fã do Bowie. Toda amizade tem seus pontos fracos e fortes, suas contribuições, descobertas e aprendizados. Obviamente mesmo que eu não os tivesse conhecido, teria com o tempo tido contato com as músicas do Bowie. Mas acho que não teria sido da maneira especial que foi. Por isso, desse encontro com eles ganhei muito, coisa de que até hoje sou grata.

image

Semana passada, me voltou à memória aquele longínquo texto sobre “Changes”. Demorei um pouco para encontrar, fui perguntar ao Marcello sobre seu antigo blog… e no fim das contas achei-o no computador, num arquivo de texto. Aí está ele, um tanto misterioso e elíptico, como eu costumava ser naqueles tempos:

Isso porque quanto mais mudamos, continuamos os mesmos, nos afastamos para chegar mais perto do ponto de partida, como fazemos numa volta ao mundo… e quantas voltas e voltas damos em torno das mesmas coisas? Pra chegar onde, a algum novo lugar necessariamente, ou àquilo que já temos em sonho?

(…)

Essa música foi gravada dez anos antes que eu nascesse, e foi aparecer pra mim quase vinte anos depois, quando alguém que nem era tão próximo de mim na época (e não é mais próximo) me emprestou Hunky Dory, e que queria me mostrar como David Bowie podia ser muito mais do que os hits dos anos 80, Outside e Earthling. Conseguiu me convencer só com esse CD. Acho que é meu preferido, até porque Changes é a primeira faixa. Uma informação paralela: Bowie a teria escrito pra Angie, quando estava grávida, segundo o Sergio, que me contou isso não faz tanto tempo.

Impressionante como desde a primeira ouvida – no som precário do Playstation que meu irmão tinha no quarto porque o CD player e o computador estavam quebrados – ela conseguiu me dizer sempre tanta coisa em pouco mais de três minutos. A primeira vez foi quando uma única coisa mudou tudo e nada restava do que preocupar comigo mesma, ou melhor, que eu tinha que me encarar, ver qual era a minha mesmo. Nada tinha que ser jogado a não ser em cima de mim. E ver como tudo é sempre muito imprevisível, muito doce ou amargo. Mesmo tentando e conseguindo superar muitas coisas, sempre conseguiu resumir o que eu sinto, por mais diferentes que as coisas estejam.

UM RELATO SOBRE ALIMENTAÇÃO

ficou na pasta dos rascunhos durante uns seis meses; eu pensava em enviar para um outro blog, sobre alimentação para crianças, mas acabei decidindo por publicar aqui mesmo, já que venho falando sobre o assunto em vários outros posts (como esse aqui) — por isso, aí vai.

image

não tenho na memória muitos momentos sobre ter sido ostensivamente forçada a comer. ainda assim, lembro que na pré-escola, na hora do almoço, me enfiaram goela abaixo uma mistura de arroz, feijão e ovo frito. eu chorava muito. sempre chorei bastante no prezinho, porque queria ficar em casa brincando com minha irmã e meu irmão, mais novos do que eu. filha mais velha, eu precisava ir logo para a escolinha, não podia ter colo e era grande demais para entrar no carrossel.
 
quando meu irmão nasceu, eu já tinha três anos e largado a fralda. mas quis fralda de novo, para ser igual a ele.
 
fazendo essa relação, também me recusava a comer como gente grande. meus primos comiam de tudo, eram até gordinhos. um exemplo para mim! mas eu era magrinha e ficava sempre doente.
 
uma coisa eu gostava de comer: doces! uma vez um tio me deu um saco cheio de balas, pirulitos, chicletes de todo tipo. comi tudo numa tarde só. tive diarréia, vomitei, passei muito mal.
 
já grandinha, minha diversão era sair da escola e passar na loja de doces, que vendia balas por quilo. escolhia com carinho as balas, pensava num roteiro: começo com a bala de banana, depois a bala de hortelã, em seguida a bala de morango, etc. etc. caminhava até em casa durante uma meia hora, com o saquinho de papel na mão. quantos gramas de bala eu teria chupado? 100, 200? por quantos dias eu segui esse ritual, dentre tantos outros rituais com a comida que criava na minha rotina?
 
outra coisa que eu comia sem dificuldade era gema de ovo frito. somente a gema! a clara me dava nojo. aí me mostraram a gemada. gema crua, muito açúcar. eita! depois que eu criei gosto pela coisa, me disseram que poderia colocar nescau junto. leite também fica gostoso. enfim, pouco tempo depois lá estava eu comendo massa de bolo cru.
 
doentinha e magra, minha mãe se preocupava comigo. descobriram uma receita milagrosa para dar apetite: biotônico fontoura com ovo de pata e leite condensado. uma colherada cheia logo pela manhã.
 
meu apetite virou uma coisa monstruosa. eu brigava e gritava com meus pais se eles não me dessem quatro esfihas de queijo. quatro esfihas, nem mais nem menos! no café da manhã eu comia dois pães franceses. recheava o pão com biscoito maria e geleia de morango.
 
de magrinha, tornei-me uma pré-adolescente obesa. tive que começar a usar roupas de adulto, porque os tamanhos infantis eram pequenos demais para mim.
 
eu sabia que era gordinha, mas compensava minhas energias no estudo. era uma aluna exemplar, 10 em todas as matérias. fui a melhor aluna da quinta série, premiada e tudo. adorava ir a concerto de música clássica, frequentava várias bibliotecas, assistia os documentários da tevê cultura.
 
mas também era uma menina muito agressiva em casa, com a família. gritava muito, quebrava coisas, chorava. ficava doente com muita facilidade: sinusite, conjuntivite, hepatite, escarlatina, rinite alérgica… também tive diversas distensões e luxações nos dedos das mãos.
 
para encurtar a história, estou até hoje revendo e reaprendendo a comer. minha família agiu da maneira que pôde, preocupada com a minha saúde, dando conta de todos os conflitos ao redor. mas ainda sou uma pessoa com imunidade fraca e digestão difícil. a idade vai pesando e os efeitos vão ficando mais aparentes. fui aprendendo meio na marra que preciso, com meu esforço, abandonar os doces que tanto fizeram parte da minha vida.
 
evito ao máximo açúcar e farinha de trigo. dificilmente consigo me controlar se há um pedaço de chocolate por perto. por isso, guloseimas pouco entram em casa.
 
tenho um filho pequeno. busco dar a melhor alimentação a ele. todo dia vou atrás de informações novas, receitas saudáveis, alternativas naturais. e espero permitir a ele uma relação mais leve com a comida.

POR QUE PALPITES ALHEIOS INCOMODAM TANTO?

foi mais ou menos essa a pergunta que surgiu durante a leitura desse post aqui. Na verdade, já faz um tempo que venho me questionando a esse respeito. Desde a gravidez e principalmente depois do nascimento do Francisco, já ouvi muitos comentários, de todo tipo, desaprovando minhas escolhas. Lendo e acompanhando outras mães com interesses semelhantes, percebo o mesmo tipo de situação. Muitos dos relatos são desabafos, reclamações, pedidos de ajuda.

E foi justamente num deles que acabei redigindo essa resposta. Eu já pensava em escrever um post sobre isso. Assim, o que comentei serviu de base para o relato abaixo.

Eu tentava, no começo, argumentar seriamente com as pessoas que me desestimulavam a parir de maneira natural, amamentar em livre demanda e a longo prazo, carregar no sling, fazer cama compartilhada, seguir o BLW, dar uma alimentação vegetal e equilibrada. Mas depois percebi que poucas delas queriam realmente me ouvir. Mais ou menos nessa época, o Francisco estava com uns seis meses, descobri a “comunicação não-violenta”. Estou longe de ser uma especialista no assunto, mas me interessou muito dois pontos que o livro de Marshall Rosenberg levanta: — diminuir as expectativas em relação aos outros; — não devemos agradar a ninguém mais que nós mesmos. Um ponto está relacionado ao outro.

Olhando para a minha história pessoal, muitas vezes tentei agradar o mundo: sendo uma aluna boa na escola, por exemplo (isso ecoou muito durante a leitura de “Você é minha mãe?”, da Alison Bechdel). Como mãe, também faço o melhor de mim. Mas, ao contrário da aluna com notas altas, as coisas que eu faço causam desaprovação. Isso me frustra e eu fico com raiva desse pessoal que não concorda com as minhas escolhas.

image

Um dos passos, então, foi exigir menos do mundo. Ser menos exigente com a pediatra, por exemplo. Abandoná-la e procurar outro foi a melhor saída. Exigir menos de quem não quer se informar. Eu quero me informar, mas não posso pedir isso da cunhada. Se ela quer dar açúcar pra sobrinha, que eu posso fazer? Sofro por dentro pela menina, mas devo respeitar e tolerar a escolha alheia — assim como quero que me respeitem como mãe.

Uma amiga começou a circular o meme “cara de alface”. Let it be. Um comportamento meio budista. Não posso fazer nada pra mudar o mundo. Posso sim cuidar do meu filho. O que os outros pensam a respeito não é responsabilidade minha. Reclamar e criticar estava me distraindo do meu objetivo principal, eu estava perdendo energia e, pior, afetando minha saúde. Imagine se essa minha implicância começasse a prejudicar a saúde do Francisco? Não seriam as cólicas dos três meses uma demonstração de que temos dificuldade para digerir as impressões que recebemos de fora?

Ainda estou longe do que eu gostaria, ainda me irrito vez ou outra quando alguém vem me provocar. Mas aí eu lembro um pouquinho daquela frase do padre nosso “perdoai as nossas ofensas assim como perdoamos a quem nos tem ofendido”. Olho pro francisco, vejo como ele está bem e feliz, dou umas risadas e vou levando a vida.

Temos nossas fases e o combate tem sua razão de ser. Bom também é enfrentarmos os defeitos das nossas próprias escolhas. E ver que as pessoas falam nem sempre por maldade mas por falta de conhecimento…

Epílogo: dias depois de ter escrito isso, saiu esse post no cientista que virou mãe. E achei interessante como contraponto. Porque há a irritação com os palpites alheios — mas vivemos também o desgaste comum da vida de mãe, que busca quem a escute, compreenda e acolha.

EU USAVA ÓCULOS

há um bom tempo. Por volta dos 10 anos de idade fui ao oftalmo e ele receitou óculos pra usar na escola, ler, ver filme. Escolhi uma armação tipo tartaruga. Depois larguei, fiquei um tempo sem usar até sentir falta deles, lá pelos 17 anos.

Meu caso era astigmatismo e miopia — fraquinhas as lentes. Mesmo assim veio uma época em que eu estava sempre de óculos. Tinha vezes em que dormia de noite e entrava no banho com eles. Tomei gosto pelas armações, tinha mais de uma, para ir variando o modelo.

DSCN2051

Chegou uma hora em que eles não estavam mais me ajudando. Marquei uma consulta para checar se eu precisava trocar as lentes. Estranhíssimo foi fazer o exame e nenhum grau de lente dar conta de me fazer enxergar as letras miúdas. Fui em mais de um oftalmologista. Ninguém sabia me responder o porquê disso. Até que o quinto especialista com quem conversei me aconselhou:

— Por que você não para de usar óculos durante uns meses? Acho que seus olhos se habituaram às lentes. E pode ser que elas não sejam mais necessárias. Ou então a miopia pode ter regredido.

Passei a usar os óculos só em alguns momentos, como ir ao cinema ou trabalhar longas horas na frente do computador. E depois nem isso. Ia ao cinema e os esquecia em casa.

Dois anos atrás, quando voltei a fazer aulas de direção, fiz outro exame. O resultado: vista sem problemas; não preciso de óculos.

Lembrei disso tudo ao ler uma passagem de “A doença como caminho”:

image

Certamente, sem os óculos eu comecei a enxergar muitas outras coisas ao meu redor.

VOCÊ É MINHA MÃE?, DE ALISON BECHDEL

é uma graphic novel autobiográfica, da qual tinha ouvido alguns bons comentários — sabia que era uma espécie de sequência ou lado b de Fun home.

Na verdade, Fun home se concentra sobre a figura do pai de Alison, falecido, provavelmente teria se jogado na frente de um caminhão, na beira da estrada. Teria ele cometido suicídio por não conseguir assumir sua homossexualidade? — essa é uma das perguntas que Alison, assumidamente lésbica, lança em sua narrativa. Já Você é minha mãe? se concentra na figura materna, principalmente ao longo do processo de criação da HQ sobre seu marido. De toda forma, minha intenção não é resumir as intrigas dos dois livros, mas apenas assinalar que as duas leituras se complementam e ajudam a entender uma a outra. É até interessante perceber os tons de cores usados: Fun home é colorido de azul, enquanto que Você é minha mãe? tem tons de vermelho e rosa — o que faz pensar na polaridade rosa e azul, para distinguir os sexos feminino e masculino. Não sei se foi intencional da parte da autora…

Comprei Você é minha mãe? no natal de 2013 e fui lendo no começo do ano seguinte. Junto com outros livros, a história de Alison me tocou e ajudou a rever melhor a minha própria.

A narrativa é muito intrincada, repleta de idas e vindas no tempo, referências literárias e psicanalíticas. Acompanhar o fio do raciocínio de Alison é como tentar refazer um novelo de lã cheio de nós e remendos. O livro está divido em capítulos: cada um inicia com um sonho de Alison — e o que se segue é uma tentativa de interpretação, recorrendo às sessões de terapia, conversas com a mãe, suas namoradas e sobretudo suas lembranças da infância.

Uma delas me chamou a atenção:

image

image

Não tenho nenhuma lembrança parecida, mas essa polaridade entre corpo e mente que Alison viveu me soou muito familiar. Aquela célebre frase do Pequeno príncipe — “o essencial é invisível aos olhos” — era um tipo de lema. O corpo, esquecido, carregava o peso de uma mente que se enchia de conhecimento. Só agora, tantos anos depois, reconheço esse desequilíbrio, que venho tentando consertar. “Eu” deixei um pedaço de mim esquecido, de lado. Uma hora ou outra é necessário recuperar o que ficou na sombra.

E por falar em sombra, a leitura da Alison ecoa muitas coisas dos livros de Laura Gutman, por mais que os temas pareçam, à primeira vista, distantes. Há muitos pontos de intersecção. Um deles é Winicott, uma das leituras principais de Alison durante seu tratamento psicanalítico. E, mesmo sem o citar, Winicott é também uma das fontes do trabalho de Gutman.

Pela mesma razão, é possível fazer uma leitura num duplo ponto de vista: acompanhando Alison e sua busca autobiográfica, revendo momentos da infância — e também dando atenção à sua mãe e suas dificuldades na criação de sua primeira filha.

image

As barreiras sociais, palpites e regras dificultaram a maternagem que Alison recebeu. Tudo isso é tratado de maneira muito delicada e respeitosa. Alison mantém contato com a mãe, expõe seu trabalho e espera dela sua opinião, um retorno. Observar essa relação também me fez pensar muito em mim mesma — tanto na filha como na mãe que eu sou.

SOBRE AQUELA FOTO, DE 2010

que foi o tema desse post aqui, ainda me vieram à mente outras coisas, sobre as quais vale a pena escrever.

Semanas antes da apresentação, entrei num estado de crise. Bateu uma profunda dúvida em relação ao que eu estava fazendo. Quero estudar autobiografia? É isso mesmo o que quero para mim? Será que não haveria outro tema, outro interesse que eu poderia explorar? Não enxergava nenhuma resposta. Fui adiante, mesmo com a visão embaçada. Às vezes é necessário confrontar-se com uma imagem pouco nítida, como uma pessoa em movimento — é mais ou menos o que diz Wittgenstein num texto que me tocou muito um ano antes. O mestrado foi um enorme aprendizado, no âmbito pessoal, sobretudo: para lidar com x outrx e comigo mesma.

Voltando àquele tempo, sentia-me bonita, gostava daquelas roupas, do corte de cabelo; essa lembrança foi clara, logo ao ver a foto. Acho bonita essa Ana Amelia de quatro anos atrás. Paro pra pensar em como o tempo voa rápido e talvez não passe de uma ilusão.

Eu estava magra, mas isso não significa que comia bem ou que estivesse bem de saúde. Lembro que para compensar o estresse, abria uma lata de leite condensado — coisa tão comum, fazer um brigadeiro de panela para acalmar os nervos. Devorava doces, sedenta. Agora entendo melhor aquela minha dependência de açúcar. Antes, eu diria que chocolate era algo indispensável na minha alimentação. Hoje, quase seis meses seguidos sem comer nenhum tipo de doce, percebo que podemos mudar nossos hábitos.

Naquele outubro de 2010, estava me tratando com homeopatia e tinha me matriculado no kung fu. Ouvia muita música, ia a vários shows, mesmo sozinha. Era como se o som do palco e a multidão da plateia me davam um pouco de força. Uma força que eu tentava obter também nos movimentos do kung fu. Força que estou ainda à procura.

Olho para trás com felicidade: sim, tanto agora como naquele momento caminho minha estrada, ao mesmo tempo tão diferente de antes, mas tão igualmente parecida.

MEU ANIVERSÁRIO

é no mês de julho e quase sempre acontecia durante as férias da escola — ou ao menos no final de semestre. Minha irmã nasceu numa data bem próxima, por isso organizava-se uma festinha para as duas, sempre simples, em casa.

Virou feriado na cidade de São Paulo, quando eu já tinha uns 10 anos. Assim, era um dia livre, sem escola nem trabalho. Comemorava junto com a irmã ou outras amigas que também nasceram em julho.

Uma vez era final da Copa, França e Itália; o bar cheio de gente vendo o jogo no telão. Foi divertido, talvez porque o jogo tirava um pouco da atenção sobre o momento.

image

Os anos foram passando e meu aniversário começou a me trazer uma sensação estranha. Uma vez estava voltando de avião pra casa, depois da primeira viagem ao exterior. E em outros anos, calhou de passar o aniversário fora, por conta de alguma viagem — fazendo cursos, que normalmente acontecem em julho, período de férias estivais no hemisfério norte. Aí um ano eu realmente me mandei. Quis me isolar, ter pouca gente ao redor. E repeti o isolamento outras vezes. Ia pra algum outro lugar. Evitava que as atenções se voltassem para mim.

Ano passado estava já com um barrigão. Fiz poucas coisas, comemos fora. Não vi muita gente. Preferi assim.

Muitas vezes associamos aniversário com festa, ver pessoas, comer e beber, agitação, barulho. Acho bem válido, mas não em todos os casos. Aniversário é a marca do nosso nascimento, nossa vinda a este mundo. Recomeça um novo ano. Deve ser especial sim. Mas não necessariamente efusivo.

Pode ser que ano que vem eu mude de ideia e faça uma grande festa. Pode ser que não. Quem sabe?

UMA FOTO MINHA, DE 2010

DSCN2673me chamou a atenção, dia desses; ultimamente tenho reaberto muitas pastas de fotos, no computador, no disco de backup, no flickr, por aí. Fui olhar para mim no passado, para os passeios que fazia, as pessoas com quem me encontrava, as atividades de que participava, os lugares que me interessavam.

Alguém, não sei mais quem, tirou essa foto de mim, com a minha câmera nikon que me acompanhou durante uns cinco anos. Foi a primeira digital, num tempo em que não valia a pena tirar foto com o celular. Estava me apresentando no encontro de francês, na faculdade, em outubro de 2010. Participava de uma mesa intitulada “Autobiografia e mulheres”. Na verdade, minha pesquisa trabalhava pouquíssimo, senão nada, com a questão feminina. O “mulheres”, no meu caso, poderia se referir ao fato de eu ser mulher, talvez — de que eu pesquisasse sob um ponto de vista feminino. Digo isso porque eu estudava um crítico francês, seus textos, principalmente aqueles em que ele falava de outros homens: Rousseau, Leiris, Gide. Também textos de outros homens críticos — Starobinski, Poulet, Raymond — falando também de outros homens: Rousseau de novo, Sartre, entre outros.

Fui reler o texto da apresentação. Sempre tive dificuldades, por conta do tempo limitado para falar; da fala contínua de 15 ou 20 minutos sem interrupção. E o texto para os anais parece mais estranho ainda, visto o limite de páginas, somente duas. Consigo até entender o que eu quis transmitir, mas duvido daquilo que quem lê compreenda.

Sobre a foto, ela me faz lembrar como eu estava naquela época. Tinha emagrecido bastante, depois de uma época mais cheinha. Agora pensando, talvez tivesse engordado antes por conta de um tratamento a base de antibiótico forte, para aliviar um problema de pele. Será, faz sentido essa relação? Estaria eu vivendo o retorno de Saturno, mudança de setênio, coisas que conheço superficialmente?

Estava quase toda de preto, blusa de alcinha, saia cinza bem escura, meia calça. Reconheço os sapatos que estava usando, redondinhos na frente e baixos.

Imprimi o texto em folhas de sulfite verde claras, como eu gostava de fazer. Usava fonte cinza, para dar baixo contraste. Com certeza também tinha escrito algo num caderninho. Poucas vezes usei power point para me apresentar, só quando muito necessário, para mostrar fotos ou imagens.

Dois anos depois, em outubro de 2012, estava defendendo a dissertação. Desse ponto até lá, tanta e tanta coisa mudou. Eu quase não falava mais das fraturas que estavam tão presentes em 2010 — elas praticamente sumiram no texto final. Espero ter me tornado um pouco menos enigmática, mas não de todo.

APRENDER UMA LÍNGUA ESTRANGEIRA É

ovonovo_-4

— não saber dizer coisas elementares quando mais se precisa.

— fazer uma criança perder a paciência tentando explicar algo de que você não tem a mínima ideia. ela fica emburrada e desiste de falar com você.

— lembrar-se de uma palavra ou frase muito tempo depois do momento em que ela era fundamental. e aí já é tarde demais.
— desligar o telefone no meio de uma conversa por não saber como continuar o diálogo, sem nem ter se despedido. morrer de vergonha de ter feito isso.
— responder de maneira lacônica — “não”, “ok” ou “sim, eu sei”, por exemplo — a uma longa e detalhada instrução que alguém te dá. e esse alguém fica na dúvida se você realmente entendeu tudo o que ele disse. pra tentar esclarecer, repete o que já disse e você novamente responde com um “ok”. você entendeu perfeitamente mas não sabe como dar uma resposta mais longa.
— as pessoas evitarem falar com você por receio de que você não entenda e não saiba responder.
— saber pronunciar e dizer algo perfeitamente, no momento certo. e mesmo assim a outra pessoa não presta atenção no que você está dizendo ou simplesmente não te leva a sério. minutos depois volta a perguntar a mesma coisa a você.
— surpreender a si e as outras pessoas, comunicando-se muito bem, mesmo que de maneira rudimentar, quando menos se espera.

EU BEBO ÁGUA

parece ser a coisa mais corriqueira desse mundo. Todo mundo bebe água. Água é fundamental para a vida. Nosso corpo é feito, em grande parte, de água. Praticamente impensável que beber água possa fazer mal. Mas pode, quando se torna excessivo. Pois esse foi o meu caso.

Pouca gente conhece esse tipo de compulsão. Ninguém vem te falar: “olha, você está bebendo água demais”. Alguém pode te comentar se fuma demais, se bebe demais. Muito sutil dar-se conta de que um hábito que é visto como positivo, saudável, possa ser perigoso.

Eu já conhecia. Amélie Nothomb, em Biographie de la faim, conta justamente a potomania, anorexia e bulimia que ela e sua irmã tiveram. Dias atrás, relembrei quase que instantaneamente do nome desse desejo por água: potomania.

Não sei se posso ser enquadrada num caso assim, é provável. De qualquer maneira, demorou muito mas percebi que a água é um problema para mim, uma dependência. Estava na minha frente há anos e anos. Era uma garrafinha de água. Devia ser aquelas de 300 ml. Depois mudou para aquelas de 500 ml. Como eram mais baratas, comecei a comprar garrafas de 1,5 l. Com o tempo, comecei a ter uma garrafa perto da cama, na mesa do computador. Até no banheiro cheguei a deixar uma delas, para o caso de eu ter sede. Praticamente em cada canto da casa. E não somente uma, mas duas, três. Garrafas vazias também.

Porque eu tinha sede. Bastante sede. Ainda tenho. A boca e a garganta secas. Era por isso que eu bebia, oras. Se tenho sede, devo beber água. Para me hidratar. Para as toxinas. Para a saúde. Para o bebê na barriga. Para ter leite.

Saindo de casa, eu precisava de uma garrafa por perto, ou de um bebedouro. Pesquisando aqui no blog mesmo, achei um post em que falo dessa coisa de ir encher a garrafinha no bebedouro. Precisava também de banheiros à disposição, regularmente.

Faz uns dias, comecei a ter tonturas, a visão embaralhada. A barriga pesada. Pensei que era algo que eu tinha comido. Tenho digestão difícil, lenta. Já sofri de gastrite no passado. Bebi água para ajudar. Fui dormir mal, me sentindo estufada.

A mesma situação retornou depois de uns cinco dias, mais forte. Eu tinha fome mas sentia que não tinha espaço na barriga. Comi iogurte, frutas. Precisava de água. Em menos de uma hora dei conta de um litro. Mas durante o dia foi muito mais, não sei quanto. 20 litros, talvez? Bem possível. Além da água pura, no almoço preparei sopa e no café da manhã tinha tomado suco de laranja. Nem consigo imaginar a quantidade de líquido que tinha ingerido.

Muita tontura e fraqueza o dia todo. Dormir à noite não conseguia. A barriga estufou, como se seu estivesse grávida, mais para cima. Vomitei bastante, água principalmente.

Quem já me alertava, muito carinhosamente, era o marido. Eu não dava importância, dizia que eu precisava. Levantava o argumento da sede. Nesse momento em que já não cabia mais água em mim, toda inchada, aceitei. Eu bebo água demais. Foi um grande passo.

peixim

E vieram muitas e muitas ideias pela cabeça, junto àquela fraqueza. Antes de cair no sono, relembrei muitos fatos. Que já dez anos atrás, quando trabalhava em biblioteca, tinha uma garrafinha do lado do computador. Aquele hábito saudável. Um chefe me repreendeu um dia, dizendo: — Assim você acaba com os nossos galões de água! — Mas como era uma pessoa que sempre me fazia críticas infundadas, que me perseguia, eu não liguei.

Já dando aulas, lembro que durante o intervalo eu enchia e terminava já no mesmo instante com uma garrafa de 500ml; reabastecia com mais 500ml para ir tomando durante o curso. Hoje em dia, quando passeio, preciso sempre levar uma garrafa de 1,5 l. Se é longo, são duas. Fui associando momentos e hábitos. Em quase todos esses momentos, muito comum que eu bebesse água muito rápido e em grande quantidade. E que eu precisasse muito ir ao banheiro.

Inúmeras coisas passaram pela cabeça: sonhos, livros, filmes, desenhos, letras de músicas. Recordações as mais diversas.

Dormi e a partir daquele dia mudei um hábito. Em vez de beber água direto da garrafa, sem me dar conta se ingeria 200, 300 ou 500 ml, estou com uma xícara de chá. Não medi, mas deve ter uns 200ml no máximo. Coloco água ali e vou dando golinhos.

Sede? Ainda tenho, muita, sempre. Mas desde aquele momento lá, em que me dei conta, sinto a sede e espero. Espero. Tudo seco. Depois de um tempo essa sede passa, simplesmente, sem água nem nada, só esperando mesmo. Tendo paciência.

Pesei-me nesses dias, a cada manhã, ao acordar. No espaço de dois dias, em que descobri o excesso de água e o seguinte, foram 3kg a menos. Muito certamente era água que eu tinha acumulada no corpo, porque depois dessa perda meu peso se estabilizou.

Não sei a partir de quando o consumo de água tornou-se exagerado. Somente depois de sentir-me mal fui pesquisar: beber 6 litros ao dia e urinar 2,5l  é o máximo recomendado. Fico imaginando quantas vezes tive uma indigestão ou um cansaço devido o excesso de água no corpo. Vai saber o que posso ter feito mal a mim mesma, à minha saúde, fazendo algo que acreditava ser bom.

Como sabem pelo blog, estou amamentando. Imagine viver isso numa época em que se está nutrindo um bebê… Como muita coisa não é por acaso, eu devo essa descoberta à maternidade. Sou muito grata ao Marco e ao Francisco por me fazerem ver essa parte de mim que eu desconhecia, mesmo estando à minha frente, ao meu lado — há muitos anos, mesmo antes de conhecê-lo, de ter chegado entre nós. Lendo A maternidade e o encontro com a própria sombra, livro que eu indico fortemente a quem esteja esperando bebê ou já tenha crianças, pode-se entender mais do que estou falando (há uns trechos aqui).

Escrevo esse relato — que acredito terá seguimentos, outros posts virão sobre o tema — também como um alerta. Pelo que pesquisei, um consumo que supere 10 litros diários pode causar intoxicação. Um post aqui, e outro em francês, trata desse assunto de maneira simples. Ainda procurarei mais sobre o assunto.

Posso dizer que mudei, em alguns dias? Deve ser aquele sistema: um dia depois do outro, um dia de cada vez. Já comecei antes umas terapias, mês passado. Vou incluir essa variável entre os elementos a tratar. Escrever é muito terapêutico para mim, sempre foi. Ler também. E fazer crochê é uma grande diversão. Acima de tudo, mergulhar na vida com um bebê, com tudo de delicioso e duro que isso comporta, é o mais importante para mim agora. A delícia supera em muito, com a sensação de poder se renovar a cada dia.