UMA FOTO MINHA, DE 2010

DSCN2673me chamou a atenção, dia desses; ultimamente tenho reaberto muitas pastas de fotos, no computador, no disco de backup, no flickr, por aí. Fui olhar para mim no passado, para os passeios que fazia, as pessoas com quem me encontrava, as atividades de que participava, os lugares que me interessavam.

Alguém, não sei mais quem, tirou essa foto de mim, com a minha câmera nikon que me acompanhou durante uns cinco anos. Foi a primeira digital, num tempo em que não valia a pena tirar foto com o celular. Estava me apresentando no encontro de francês, na faculdade, em outubro de 2010. Participava de uma mesa intitulada “Autobiografia e mulheres”. Na verdade, minha pesquisa trabalhava pouquíssimo, senão nada, com a questão feminina. O “mulheres”, no meu caso, poderia se referir ao fato de eu ser mulher, talvez — de que eu pesquisasse sob um ponto de vista feminino. Digo isso porque eu estudava um crítico francês, seus textos, principalmente aqueles em que ele falava de outros homens: Rousseau, Leiris, Gide. Também textos de outros homens críticos — Starobinski, Poulet, Raymond — falando também de outros homens: Rousseau de novo, Sartre, entre outros.

Fui reler o texto da apresentação. Sempre tive dificuldades, por conta do tempo limitado para falar; da fala contínua de 15 ou 20 minutos sem interrupção. E o texto para os anais parece mais estranho ainda, visto o limite de páginas, somente duas. Consigo até entender o que eu quis transmitir, mas duvido daquilo que quem lê compreenda.

Sobre a foto, ela me faz lembrar como eu estava naquela época. Tinha emagrecido bastante, depois de uma época mais cheinha. Agora pensando, talvez tivesse engordado antes por conta de um tratamento a base de antibiótico forte, para aliviar um problema de pele. Será, faz sentido essa relação? Estaria eu vivendo o retorno de Saturno, mudança de setênio, coisas que conheço superficialmente?

Estava quase toda de preto, blusa de alcinha, saia cinza bem escura, meia calça. Reconheço os sapatos que estava usando, redondinhos na frente e baixos.

Imprimi o texto em folhas de sulfite verde claras, como eu gostava de fazer. Usava fonte cinza, para dar baixo contraste. Com certeza também tinha escrito algo num caderninho. Poucas vezes usei power point para me apresentar, só quando muito necessário, para mostrar fotos ou imagens.

Dois anos depois, em outubro de 2012, estava defendendo a dissertação. Desse ponto até lá, tanta e tanta coisa mudou. Eu quase não falava mais das fraturas que estavam tão presentes em 2010 — elas praticamente sumiram no texto final. Espero ter me tornado um pouco menos enigmática, mas não de todo.

É ESSE O DISCO

que vi na biblioteca quando comecei o curso de alemão; a imagem da capa me atraiu, levei para casa. São poemas do Heine com acompanhamento de jazz. Isso já faz um tempo.

Ontem sonhei que íamos atrás de Gert Westphal, a voz dos poemas de Heine.

Sei que fomos numa loja de discos, procuramos por mais trabalhos que Gert tivesse feito. O que no sonho achamos, não sei, mas foi divertido. Agora descubro que ele se tornou famoso por suas leituras (era o rei dos leitores) de Flaubert, Dostoievski, Mann; e é ao lado da sepultura deste último que está enterrado, num cemitério em Zurique.

ESCREVO UMA HISTÓRIA

em que ele é meu personagem; haverá diferenças, é claro, entre a pessoa e o que ele é em meus escritos. Não sei, no entanto, se ele lê o que eu escrevo. Na suspeita (ele é meu leitor?), escrevo para que ele se reconheça na leitura, que tenha, nas entrelinhas, alguma segurança em dizer – isso sou eu também! Como se fossem cartas para ele mesmo, noticiando coisas minhas mas também dando conta do que ele é para mim.

COM UMA LETRA, B

logo que aprendi a ler, tinha muita dificuldade para diferenciar um b de um d minúsculos. b d d b b d , as barriguinhas pra esquerda ou pra direita?

posso fazer uma lista de músicas para tocar: Beatles, Brian Eno, Beck, Babet, Bénabar, Bidê ou balde, Bebel Gilberto, Björk, Baby Consuelo, Baden Powell, Barbara, Billie Holiday, Bazar Pamplona, Beach boys, Brigitte Bardot, Babylon Circus, Bowie, Beirut, Belle and Sebastian, Bruce Springsteen, Bezerra da Silva, Blur, Brian Ferry, Brisa Roché, Blossom Dearie, Beastie boys. Pego pra ler Barthes, Beckett, Benveniste, Bakhtin, Blanchot, Bachelard, Borges, a bíblia – e Balzac. Faço batata frita, bolo, brigadeiro e preparo uma batida.

A MIM TAMBÉM ME DÓI

foi a única coisa que escreveu, um dia, entre tantos desenhos. Durou pouco tempo, não mais que duas horas: logo a própria polícia veio apagar o muro. E foram apagados tantas outras vezes os traços que você fazia, que eu achava serem para mim. Traços de mim mesma, que com os meus desenhos procurava outros vazios, em outras línguas, imaginando que você fazia outros desenhos, saindo à noite logo em seguida para encontrar os meus. Grafites.

DUAS, TRÊS

ou quatro coisas:

1) Eu não conheço tudo, nem do que eu gosto: não domino as obras completas, nem filmografia do início ao fim, nem todas as letras das músicas. Mesmo duas temporadas de um seriado eu não vejo até o fim para guardar um pouco de desconhecido.

2) Percebo que não escuto direito o que as pessoas me dizem: uma história, uma informação. Ou demonstro que não escuto, mas guardo. E a coisa reaparece de repente, mesmo sem eu ter dado muita atenção, ou ter sido muito discreta. A coisa chega até mim.

3) Adoro me dispersar. Criar muitos planos, organizar as obrigações e me divertir de pegar um caminho inesperado.

4) Acho que consigo realizar meus desejos. Faço um, fico em silêncio, respiro fundo. Pouco tempo depois a coisa acontece, simples. Não são grandes desejos. São como as tardes do começo de inverno, laranjas no céu.

O QUE É ENVISAGER?

É um verbo muito prático em francês, porque funciona como um substituto para pensar, planejar, considerar, fazer um projeto. O Robert traz a citação do Estrangeiro, de Camus, para exemplificar o uso de “envisager de”:

« Masson, Raymond et moi, nous avons envisagé de passer ensemble le mois d’août à la plage » (Camus)

“Masson, Raymond e eu, nós pensamos em passar juntos o mês de agosto na praia” (tradução minha).

E, sabendo o que acontece com Meursault naquele dia de planos e pensamentos sobre o futuro na praia, vemos que envisager pode ser só a criação de vagos planos, considerações. O que a gente tenta enxergar no futuro. Mas que pode se afastar dele.

Não há equivalente em português com essa mesma raiz de envisager, que vem de visage, que vem de vis, rosto, a aparência, aquilo que é visto. Há visagem em português, mas seu uso é restrito.

Visage está relacionado ao mesmo radical de inúmeras palavras em português: visão, revisor, aviso, prudente (aquele que provê), evidência, entrevista, previsto, improviso, revista, vídeo, visitação, vistoria.

O LEITOR

procura no texto a vontade do escritor de conquistá-lo.

E o escritor-fantasma, como do filme do Polanski?

Ele simplesmente de nada entende. Como ele está num filme de suspense, saber de nada (nem dos acontecimentos da política – nós não lemos as notícias mas sabemos cativar o público e vender milhões de livros) se torna o charme que atrai o espectador, que se diverte. Isso porque não sabem (escritor-fantasma e espectador) o que o autor morto do manuscrito (um ghost writer que precede o nosso) deixou como mistério a desvendar. Jogos de dobras e desdobras.

MITOLOGIAS

das grandes cidades: nelas as pessoas falam sobre a própria cidade e produzem discursos que a recriam, engrossam o coro da população numerosa. Assim elas são construídas. Mesmo quem é de fora conhece essas grandes cidades, cheias de cantos e histórias.

E há cidades que são pouco faladas, escritas. Ou que nada dizem. Não há romances, filmes, seriados ou novelas que se passam ali – questão prática de produção: muito trabalho levar uma equipe para aquelas paradas. Nenhuma música. Nenhum grande nome. A não ser o seu próprio, pendurado num mapa.

OS GÊNEROS

principais cabem em “O segredo de seus olhos”, no imdb: thriller, romance, drama, comédia, filme de crime; ainda reúne uma lista de “palavras-chave” curiosas. Uma me pareceu interessante: “local blockbuster”.
Podia ter uma palavra-chave assim: “funcionalismo público”. Caberia como uma luva!
O diretor, além dos filmes com toques de engajamento, também dirige seriados para a tevê nos eua, descobri isso agora também. Assim como Darín participou de um episódio de Chiquititas argentina.

O filme, como essa maneira de falar dele, é um pretexto. O filme me fez pensar em deixar um caderno bem do lado da cama, e anotar o que vem no sonho. Que sonho ele teve naquela hora? Parece que esse sonho, se foi colocado no filme, é feito para que nos esqueçamos dele. Boa sacada do roteiro, dentre tantas.

Além disso, uma pequena ponte entre O segredo de seus olhos e O filho da noiva: a questão do tempo longo que passa mas que não apaga nada; parece que traz de volta algo quando na verdade nunca esse algo nunca foi embora. Guardar um caderno em branco, um recorte de jornal esperando o dia em que ele vai dizer alguma coisa. Dizer porque o tempo passou.