ALGUNS CHEIROS

da pele da minha mãe, de creme talvez, mas que ficava bem só nela, eu procurava o braço dela quando menos esperava; do corredor do apartamento na Barão de Tatuí, que eu acreditava vir do lustre, de vidro fosco e contorno verde-água; dos biscoitos dentro da lata marrom, com flores amarelas; dos ares dos lugares: cada lugar, um cheiro diferente; o cheiro de bicho (um mamífero, sabe-se lá qual) nadando num rio; de funghi, que a moça da zona cerealista acha nojento; cheiro de chuva; cheiros dos livros novos no começo do ano; da fita 3M para os livros da biblioteca; de vinil novo, no plástico.

A MULHER DOS CINCO ELEFANTES

de novo um título que me chama; os elefantes são obras de Dostoievski traduzidas do russo para o alemão por uma ucraniana, Swetlana Geir, hoje já velhinha, passando de um cômodo a outro da sua casa, nas tarefas de todo dia: cortar cebolas, alinhar as fibras da roupa com o ferro de passar, juntar a família, trabalhar com os textos. E o trabalho, do qual não se sai impune (e não se entra sem razão alguma), não se faz apenas sozinho.

E em dupla, como num jogo de tabuleiro, ela nos dá uma lição: em vez de olhar só para o texto, o nariz virado para o umbigo, os olhares se levantam para o outro, e assim o nariz respira o texto que emana do papel.

JÁ PENSARAM

que eu era bailarina, por conta dos meus pés; que eu era arquiteta, pela minha letra; que eu tinha uma banda, porque falava muito de música durante as aulas; que eu me chamava Cristina ou Laís; que eu tinha nascido no interior, a família morava toda lá; que em São Paulo eu dividia um apartamento com meu irmão; que eu era carioca; do sul; chilena, árabe, italiana.

Já disseram que as mãos são de pianista, os dedos muito pra fora; que o nome é de personagem do Camilo Castelo Branco; o nariz mostrava minha origem grega; os pés, novamente, fenícios. Que os olhos têm íris exemplares; o jeito, de personagem de Jane Austen; ou Mafalda; que tenho tudo a ver com Talking Heads; que poderia ser adulta nos anos 80, comendo sempre no Frevinho, descendo a Augusta cantando Ná Ozetti.

– E não sou eu?

O ÚLTIMO ROMANCE DE BALZAC

me atraiu logo pelo título. Sala com bem pouca gente para ver a proposta incomum: docu-ficção sobre um romance psicografado atribuído a Balzac, publicado em português e descoberto por acaso por um leitor cuidadoso. Tão “engajado”, como ele mesmo diz, que dedicou anos a pesquisar as referências da obra e fazer paralelos com os romances da Comédia humana, em particular com Pele de onagro, que aproxima da vida de Balzac.

E tanto aproxima que o personagem da história não é mais Rafael, mas Lirinha encarnando Balzac num filme mudo – e, além dele, todos os outros leitores-escritores-pastichadores e os pactos que fazemos quando queremos alcançar a teoria das nossas vontades.

SE VOCÊ ESCREVE

– é porque sente falta de algo e acredita que, escrevendo, as linhas se acumulando, essa falta fica escondida entre as letras. Elas te serviriam como uma defesa: você gostaria de ser protegido pelas suas palavras.

– você precisa escutar com generosidade o que as tuas palavras te dizem; e esse esforço nunca será suficiente.

– é porque viu algo escrito antes de você, coisa do mundo que você quer para si também, você sabe; e o mundo não é você, nem eu. Não passamos de um acidente, peças do acaso; o mundo continua a girar, escrevendo ou não.

ANDAVA DE BICICLETA

no shopping. Outras poucas pessoas também. Era estranho, as famílias olhavam com cara feira na praça de alimentação. Eu mesma não achava prático. Queria comer, fui num quilo, com um buffet comprido. Muitas opções de comida. Algumas com indicação, outras coisas eram um mistério, escondidas sob o molho.

Tinha carne de bisão. Peguei, seguindo minha regra de comer carnes que ainda não comi. Pensei em escrever um sms avisando mais alguém que poderia se interessar.

Entre as bebidas, leites de diferentes mamíferos. Pensei em ‘Tigermilk’, do Belle and Sebastian.

O buffet não terminava, mais comida se enfileirava, a balança muito longe ainda. O meu prato no entanto diminuía de tamanho, ficava cada vez menor para a comida que eu já tinha escolhido.

A MOÇA PARECIDA

com a Ellen Page apareceu num sonho. Ela organizava uma campanha na escola, para ajudar a reorganizar o acervo da biblioteca. Decidiu com uns colegas realizar um grande evento e arrecadar dinheiro. Eu estava lá no dia, com minhas amigas bibliotecárias. Ellen Page conseguiu convidar a Gisele Bündchen que, descobríamos quando ela chegou à escola, tinha estudado biblioteconomia em paralelo à carreira de modelo.

O ASSUNTO ERA EU

e meus pais recordaram juntos de uma historinha.

Estávamos no consultório médico, otorrino provavelmente. O médico deixou o estetoscópio na mesa, eu o peguei e aproximei da boca. Ele me perguntou: – O que você quer fazer com isso, mocinha?

Disse: – Quero ver o que eu tenho por dentro, minha goela.

Fui chamada de curiosa.

Lembro disso, e também tinha outra versão, que minha mãe não conseguiu confirmar. Assim: na hora em que o médico pegou o palito de madeira para ver as amídalas, perguntei a ele: – Você quer ver minha goela?

A palavra goela, muito usada em casa, minha mãe corrigiu: – Não é goela, Ana Amelia; é garganta que se fala.

Goela (e gueule, em francês) rendem uma explicação no dicionário, em breve quem sabe.