MITOLOGIAS

das grandes cidades: nelas as pessoas falam sobre a própria cidade e produzem discursos que a recriam, engrossam o coro da população numerosa. Assim elas são construídas. Mesmo quem é de fora conhece essas grandes cidades, cheias de cantos e histórias.

E há cidades que são pouco faladas, escritas. Ou que nada dizem. Não há romances, filmes, seriados ou novelas que se passam ali – questão prática de produção: muito trabalho levar uma equipe para aquelas paradas. Nenhuma música. Nenhum grande nome. A não ser o seu próprio, pendurado num mapa.

EM VEZ DE DIZER

outra coisa diz por nós.

Por falta do que dizer – por falta de conhecimento da própria situação? – a citação, a imagem de uma música, a referência a uma personagem.

O que Cecília Meireles disse também não é só dela era de outro lugar; ela deixou falar outras coisas?

Seriam das minhas coisas, afinal, de que ela fala?

Ou isto ou aquilo

Ou se tem chuva e não se tem sol
ou se tem sol e não se tem chuva!

Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!

Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.

É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo em dois lugares!

Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e gasto o dinheiro.

Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo . . .
e vivo escolhendo o dia inteiro!

Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranqüilo.

Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo.

“PORQUE O REI

fazia questão que sua autoridade fosse respeitada”.

Assim é o monarca que o Pequeno Príncipe encontra em sua viagem. É uma das personagens que mais me marca no livro. Isso porque tem uma sabedoria muito prática:

– Se eu ordenasse a meu general voar de uma flor a outra como borboleta, ou escrever uma tragédia, ou transformar-se em gaivota, e o general não executasse a ordem recebida, quem – ele ou eu – estaria errado?
– Vós, respondeu com firmeza o principezinho.
– Exato. É preciso exigir de cada um o que cada um pode dar, replicou o rei. A autoridade repousa sobre a razão. Se ordenares a teu povo que ele se lance ao mar, farão todos revolução. Eu tenho o direito de exigir obediência porque minhas ordens são razoáveis.
– E meu pôr-do-sol? lembrou o principezinho, que nunca esquecia a pergunta que houvesse formulado.
– Teu pôr-do-sol, tu o terás. Eu o exigirei. Mas eu esperarei, na minha ciência de governo, que as condições sejam favoráveis.
– Quando serão? indagou o principezinho.
– Hem? respondeu o rei, que consultou inicialmente um grosso calendário. Será lá por volta de… por volta de sete horas e quarenta, esta noite. E tu verás como sou bem obedecido.

A RUA PAIM

faz parte da minha rotina: passo por lá quase todo dia; é uma das melhores vias de acesso para chegar em casa. Ela sempre foi mal falada. Há ali um treme-treme e, a caminho da Frei Caneca,  inúmeras casinhas, que reúnem muita gente. O pessoal no fim-de-semana põe a cadeira para fora de casa, os bares tocam música alto, as crianças jogam bola no meio da rua, o lixo se acumula nas calçadas.

Eu poderia elencar só inconvenientes, mas não. Muito tempo conhecendo e morando por perto, vejo que as pessoas vivem muito próximas. E há muito tempo ali, construíram laços. Assim como eu vejo muita gente que cresceu lá, também devem perceber que eu passo por ali faz muitos anos.

Ultimamente, com o crescimento da região, algumas casas começaram a ser demolidas. Empreendimentos que já se generalizaram na Frei Caneca, depois do shopping, chegam agora mais para baixo. E ameaçam toda uma vida dessa rua, barulhenta mas amigável.

Nessas casinhas, além de residências, há toda uma quantidade de serviços: um senhor que conserta bicicletas, uma costureira, três bares, uma casa do norte, uma lojinha de produtos variados (vassoura, brinquedos), uma pizzaria, uma loja de materiais eletrônicos usados (com minilocadora de dvd), uma senhora que vende pamonhas, outras pessoas que vendem churrasquinho, um barbeiro, uma marcenaria, uma loja de roupas…

No lugar disso tudo, só portarias de prédios?

Já não há mais: uma padaria (a mais perto? na Frei Caneca somente…), uma fábrica de ar-condicionado, uma banca de revistas, uma papelaria, uma loja de produtos para festa, um restaurante típico italiano, o Posilippo. Onde vai subir um prédio tempo havia, faz dez anos, uma granja que vendia galinha caipira. Será que a casa branca, onde hoje funciona a farmácia, vai continuar por lá?

Não lembro se outras vezes a rua se decorou tanto para a copa. Com que cara estará a Paim na copa seguinte?

DURANTE A PROJEÇÃO

de Viajo porque preciso, volto porque te amo, me veio o sonho que eu tive, talvez hoje mesmo, talvez poucos dias atrás. Eu já sabia, hoje de manhã me lembrei, que eu sonhei que era preciso regar as plantas. Eu regava, via a água entrar por meio da terra, os vasos transparentes me mostravam o caminho da água. Também sonhei com um banho de chuveiro que me desagradou. Muita água para me dizer que eu estava com a garganta muito seca, de respirar pela boca. O nariz entupido. Mas isso tudo não foi durante o filme.

Em meio às estradas do nordeste de Viajo…, me veio que eu sonhei com Bye Bye Brasil, que eu não assisti, ou se assisti não lembro.

Vi no filme o que posso estar vendo em outros lugares: um álbum, feito de recortes e vozes perdidas. Destoa quando o tom muda: quando a música não é mais do rádio do carro, quando a narração vira entrevista. E recortes de um diário, como preparação de outra coisa – dos filmes de Karim Aïnouz e de Marcelo Gomes. Preparação que vemos depois dos filmes que se seguiram essa viagem, essa coleta de imagens e visitação de um imaginário.

Na volta para casa fiquei puxando a história do meu sobrenome. E descobri que talvez ele tenha vindo do nada.

UM OUTRO ELE

Larry David, em Tudo pode dar certo,  faz o que se espera do que não se prevê: ser um ator diferente do Woody Allen e ao mesmo tempo encarnar algo do Woody Allen: ser o outro, ser e não ser mais um outro da lista de personagens neuróticos. Um exercício imenso, esse, de se fazer outro e se fazer sempre protagonista. Um deleite. Ri meio sozinha no cinema.

DOMINGO PASSADO

sem ter planejado nem nada, revi com a Karen A árvore, o prefeito e a midiateca, do Rohmer. Já queria, desde janeiro, quando ele faleceu, rever, ou até melhor, fazer toda uma retrospectiva do que tem dele em dvd. E até ir atrás dos filmes posteriores a Inglesa o e duque.

A Karen defende que os filmes vão se mostrando cada vez mais chatos com o passar do tempo. Até entendo onde estaria essa chatice nos filmes dele. Percebo a dicção das atrizes, sim. Mas isso é mais razão para gostar do cinema que ele faz. As conversas sem fim, em longas cenas externas. As discussões que vão de paixonites a política. O real que ele coloca, indo para diversos lugares da França a cada filme. Pelos cenários que são na maior parte das vezes a rua (- uma ideia de filme: que ele só tenha cenas externas). Pelas pessoas que tentam ser como qualquer uma, vivendo.

INDO E VINDO

do hospital semana passada, na primeira ida pensei: esse lugar que nos afasta da doença, da morte. Que coloca tudo num mesmo fundo branco, um mesmo cheiro que não é cheiro de nada: assepsia, silêncio, frieza.

E como era tudo num certo antes que não temos mais: dos partos às mortes, tudo acontecia aqui no quarto, ao lado, no contato. Agora, diagnósticos por imagem, e não vemos mais quem sofre.

Ainda voltei ali mais vezes; e voltando, recorri a  imagens de hospitais, de filmes – me veio logo Fale com ela, depois a maca de A vida secreta das palavras (e Srta. Cora do Cortázar), os sanatórios como em O sopro do coração, ou mesmo Um estranho no ninho -, os seriados – Plantão médico que eu via tanto na tevê, e o número considerável de séries médicas, já um gênero à parte.

A repetição: dos turnos de enfermeiros, a visita diária rápida da médica que tem tudo a dizer na ponta da língua, as refeições com sua montagem e disposição, trouxe um pouco do sociável, dosado de acolhida e distância.

Talvez por ter uma cama ali para mim, por eu ter levado livros, por ganhar um tantinho de comida. Por ter uma abertura, mesmo que mínima, de janela.

Talvez por eu poder reencontrar ali, em outro cenário, os mesmos personagens com quem convivo, num roteiro desconhecido. E viver outras cenas, falar outras palavras.