A EXPLICAÇÃO

mais simples é geralmente a correta. Algo assim, aproximadamente, grosso modo.

Mas dentro dessa explicação surge um exemplo: como definir a cor do céu?

dizem:

É claro que o céu é azul, sabemos disso só de olhar para ele, mas de que tom de azul ele é exatamente? Qualquer um que já tenha se envolvido em uma discussão para ver se uma meia escura é preta ou azul-marinho consegue compreender a influência de nossa visão de mundo e como ela afeta nossas decisões.

O que eu vejo agora? Tudo sem nitidez. Mas como já disse Wittgenstein, às vezes precisamos justamente da imagem borrada. Ficar sem os óculos, resgardar-se, procurar um reduto, refúgio, lugar de uma fuga. Forno, casulo, geladeira, toca.

DUAS, TRÊS

ou quatro coisas:

1) Eu não conheço tudo, nem do que eu gosto: não domino as obras completas, nem filmografia do início ao fim, nem todas as letras das músicas. Mesmo duas temporadas de um seriado eu não vejo até o fim para guardar um pouco de desconhecido.

2) Percebo que não escuto direito o que as pessoas me dizem: uma história, uma informação. Ou demonstro que não escuto, mas guardo. E a coisa reaparece de repente, mesmo sem eu ter dado muita atenção, ou ter sido muito discreta. A coisa chega até mim.

3) Adoro me dispersar. Criar muitos planos, organizar as obrigações e me divertir de pegar um caminho inesperado.

4) Acho que consigo realizar meus desejos. Faço um, fico em silêncio, respiro fundo. Pouco tempo depois a coisa acontece, simples. Não são grandes desejos. São como as tardes do começo de inverno, laranjas no céu.

BEBÊS FALAM

nos sonhos de muitas pessoas, me disse o Sérgio quando contava que tinha um deles que falava num meu. Ele era pequeno, filho sabe-se lá de quem. De todo mundo e de ninguém. A família toda, numerosa, se espalhava pelos cômodos da casa. Talvez a casa fosse grande (mas não chique) porque aqui fui num tipo de “casa cor”, na futura casa do governador Gaguim.

Fora isso, vida de poucos sonhos marcantes, por ter dormido pouco todos os dias, e dias sem dormir nada mesmo. Madrugada de sábado para domingo passei entre o sono e o despertar, calor, ar condicionado fazia muito barulho.

Os dias já são amarelos e azuis, ritmados pelos jogos da copa.

Os fins de tarde, céu que é uma redenção.

UMA NOVA MOEDA

de 25 centavos apareceu. Entrou em circulação. Ela era redondinha, gordinha, amarela, da cor da estrelinha (do Super Mario ou a “estrelinha mágica” da Turma da Mônica). Bom, justamente no jogo do Mario há moedinhas pelo caminho, assim como no Donkey Kong deveríamos ir pegando todas as bananas que apareceriam.

Com ela, era possível tirar dinheiro dos telefones públicos. Bastava colocar (meio escondidos nos orelhões dava para descobrir um buraco para essa moeda) e saía dinheiro. Moedas de todos os valores. Estávamos na usp e a gente ia atrás de todos os orelhões tirar dinheiro que estava ali escondido, como um tesouro que piratas poderiam ter deixado para o futuro.

Lembrei agora que esse sistema se assemelha muito a um brinquedo que eu tinha, o Boca Rica. As moedas, a gente colocava e não sabia quando a portinha se abriria liberando tudo o que ele guardava.

MEU CPF PERDIDO

ou talvez o cpf de todo mundo tenha sido cancelado.

Sei que eu pelo menos deveria fazer um novo cpf. Fomos todos a um tipo de poupa-tempo. Uma sala onde senhores distribuíam, com um critério desconhecido, senhas. Uma hora um senhor dizia: – Só para os homens. Depois: – Só para as mocinhas!… Aflita, fiquei atrás de um senhor que decidiu me entregar a senha, que já era uma ficha para preencher.

Todo mundo acabou conseguindo a sua ficha.

Fui num balcãozinho preencher meus dados. A caneta que eu tinha era vermelha, uma bic comum. O número do meu cpf, eu tinha esquecido, e no sonho ele foi me aparecendo diferente do que ele é na realidade. Mesmo assim, fui preenchendo com esse número estranho, que me ludibriava.

Ele mudava, se esquivava. Eu rasurava a ficha, que ficava amassada, com dobras fortes.

Na hora de assinar, eu fiz o movimento de mão habitual e a assinatura saiu muito diferente. Fiquei aterrada, preocupada. E agora, com essa assinatura diferente, como é que eu vou apresentar essa ficha?

Como terei duas assinaturas diferentes? E se descobrirem, compararem?

Um amigo chega meio bravo e apressado, dizendo que ele mesmo tinha conseguido o cpf novo, depois de pegar uma fila. Eu ainda tinha que apresentar a ficha. Estava atrasada.

As pessoas estavam impacientes, não queriam ficar me esperando, enquanto eu hesitava sobre essas novas informações que apareciam a meu respeito.

O QUE É ENVISAGER?

É um verbo muito prático em francês, porque funciona como um substituto para pensar, planejar, considerar, fazer um projeto. O Robert traz a citação do Estrangeiro, de Camus, para exemplificar o uso de “envisager de”:

« Masson, Raymond et moi, nous avons envisagé de passer ensemble le mois d’août à la plage » (Camus)

“Masson, Raymond e eu, nós pensamos em passar juntos o mês de agosto na praia” (tradução minha).

E, sabendo o que acontece com Meursault naquele dia de planos e pensamentos sobre o futuro na praia, vemos que envisager pode ser só a criação de vagos planos, considerações. O que a gente tenta enxergar no futuro. Mas que pode se afastar dele.

Não há equivalente em português com essa mesma raiz de envisager, que vem de visage, que vem de vis, rosto, a aparência, aquilo que é visto. Há visagem em português, mas seu uso é restrito.

Visage está relacionado ao mesmo radical de inúmeras palavras em português: visão, revisor, aviso, prudente (aquele que provê), evidência, entrevista, previsto, improviso, revista, vídeo, visitação, vistoria.

O QUE É CONCERTO?

Em português, há tanto concerto como conserto.

[num concerto, a olhos vistos o músico fazendo a sua música, como o ator na peça ou mesmo num filme; e como vemos o escritor em seu fazer?]

Um concerto: qualquer apresentação musical (equivalente a show); uso que deriva por metonímia da composição musical feita para orquestra e solistas, no vocabulário da música erudita. Em francês essa distinção aparece: para eles há concert para a apresentação em geral (diz-se show no francês quebequense) e concerto para a música erudita.

Essas acepções aparecem, contudo, nos dicionários, depois de outras. Concerto é sinônimo de combinação, ajuste, reunião, pacto. Sua formação está ligada a certo, acertar, desconcertante. Envolve uma ação em grupo.

Concertar, o verbo: entrar em decisão por meio de um comum acordo, deliberar em conjunto; preparar, armar. O verbo consertar é uma “especialização”, e compartilha ainda algumas das acepções de concertar. Confusão que em francês não se dá: há concerter para a organização feita em grupo e réparer para fazer desaparecer erros e problemas, retornar algo ao seu estado de origem, reparar um erro.

O LEITOR

procura no texto a vontade do escritor de conquistá-lo.

E o escritor-fantasma, como do filme do Polanski?

Ele simplesmente de nada entende. Como ele está num filme de suspense, saber de nada (nem dos acontecimentos da política – nós não lemos as notícias mas sabemos cativar o público e vender milhões de livros) se torna o charme que atrai o espectador, que se diverte. Isso porque não sabem (escritor-fantasma e espectador) o que o autor morto do manuscrito (um ghost writer que precede o nosso) deixou como mistério a desvendar. Jogos de dobras e desdobras.