SHANTALA, DE FRÉDÉRICK LEBOYER

é um dos livros que mais me fizeram chorar. Lembro que li na cama, deitada, numa tarde de sol. Talvez fosse sábado. Devia estar no quinto mês de gestação. Emocionei-me além do que esperava.

Isso porque Leboyer — renomado obstetra francês, que mudou a percepção do parto, junto a Michel Odent e outros — não está somente explicando os passos da massagem para bebês que leva o nome de Shantala, moça indiana que ele encontra em Calcutá. O livro fala sobre a passagem dos bebês do meio uterino ao nosso mundo. Fala também da relação que podemos construir com os bebês: toques, abraços, afagos e carinhos conduzem mãe e bebê numa trajetória de mútuo autoconhecimento.

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O corpo do bebê, massageado, recebe conforto, tranquilidade e segurança. As mãos que massageiam aprendem a delicadeza e a força de que se constituem os bebês. Ambos dão e ambos recebem.

Como já adiantei em outro post, comecei a fazer massagens no Francisco desde as primeiras semanas. Mas nunca segui os passos da shantala rigorosamente; quando tentava, não funcionava. Interrompia porque o Francisco queria dormir ou mamar. No fim das contas, fazemos uma massagem nossa, seguindo nosso próprio ritmo.

O mais importante para nós foi seguir o princípio daquilo que a shantala transmite: contato pele a pele, reverência pelo bebê…

Leboyer fez um filme com Shantala e seu filho. Pela internet afora, é possível encontrar quem explique os movimentos da massagem. Pessoas oferecem cursos e oficinas também. Ainda assim, nada se compara à leitura da escrita muito rica e poética que Leboyer nos dá.

– VAMOS, VISCONDE

Bote aí seis pontos de interrogação – insistiu a boneca.

Depois de ler Memórias da Emília, ficam uns enormes pontos de interrogação frente a curiosidade sem igual, as tiradas geniais, as boas ideias e os xingamentos que ela solta a torto e a direito – principalmente aqueles contra a tia Nastácia, quem costurou a boneca de pano.

OUTRO ASSIM

igual, do mesmo jeito, de novo: é o que a gente procura nas coisas; algo parecido com outra coisa, que leva a outras coisas parecidas: ver o mesmo tipo de filme, ler um mesmo livro várias vezes, assistir a mesma novela que reprisa. Uma vez li uma crítica de cinema que dizia isso, de maneira negativa: os mesmos tipos de filme hollywoodiano são refeitos por anos e anos. As pessoas continuam a assistir, se divertir e esperar por mais.

ANTES DE DORMIR

lia um livro; em algum momento ele ficou de lado, fechei os olhos. Já dormia, mas o livro quis continuar: eu contava a história para mim mesma, cheia de pequenos detalhes, nomes inventados, pessoas que se procuram entre estantes na livraria. Quando descobri que aquela voz que me falava era eu, que me inventava continuações para os dois personagens principais, o Leitor e a Leitora, acordei espantada. A história toda que eu me contei evaporou.

GUARDEI UMAS FOLHAS

no meio do caderno, para ler depois, anotações de um ciclo de palestras; mais de dois anos se passaram, peguei agora. Pouca coisa das notas me dá alguma informação precisa –  incompletas e lacunares demais. Não sei o que foi dito pelos professores e o que eu mesma pensei. Alguma coisa ali ainda é verdade para mim hoje.

A MULHER DOS CINCO ELEFANTES

de novo um título que me chama; os elefantes são obras de Dostoievski traduzidas do russo para o alemão por uma ucraniana, Swetlana Geir, hoje já velhinha, passando de um cômodo a outro da sua casa, nas tarefas de todo dia: cortar cebolas, alinhar as fibras da roupa com o ferro de passar, juntar a família, trabalhar com os textos. E o trabalho, do qual não se sai impune (e não se entra sem razão alguma), não se faz apenas sozinho.

E em dupla, como num jogo de tabuleiro, ela nos dá uma lição: em vez de olhar só para o texto, o nariz virado para o umbigo, os olhares se levantam para o outro, e assim o nariz respira o texto que emana do papel.

O ÚLTIMO ROMANCE DE BALZAC

me atraiu logo pelo título. Sala com bem pouca gente para ver a proposta incomum: docu-ficção sobre um romance psicografado atribuído a Balzac, publicado em português e descoberto por acaso por um leitor cuidadoso. Tão “engajado”, como ele mesmo diz, que dedicou anos a pesquisar as referências da obra e fazer paralelos com os romances da Comédia humana, em particular com Pele de onagro, que aproxima da vida de Balzac.

E tanto aproxima que o personagem da história não é mais Rafael, mas Lirinha encarnando Balzac num filme mudo – e, além dele, todos os outros leitores-escritores-pastichadores e os pactos que fazemos quando queremos alcançar a teoria das nossas vontades.

HOJE NADJA DISSE

– você vai me ler. – tá bem, eu disse; tirei-a da estante.

Anos já eu olho para essa capa:

E fui de mãos dadas com ela que, como a André, me deixou uma pequena certeza: todos os livros devem ser como Nadja. Uma porta, um passeio entre pequenas e ricas coincidências: outubro, mãos e luvas, encontros marcados que não acontecem, acasos e enigmas que se acumulam. 10 de outubro Nadja disse a André: “tudo enfraquece, tudo desaparece. De nós alguma coisa deve permanecer”. Como, se mesmo a cidade já mudou de paisagem?

Não sou eu quem vai meditar sobre o que advém da “forma de uma cidade”, nem mesmo da verdadeira cidade, alheia e abstrata, daquela em que moro, por força de um elemento que seria para a minha mente o que o ar é para a vida. Sem nenhum arrependimento, agora a vejo tornar-se diferente e até fugir. Resvala, se incendeia, afunda no redemoinho de suas barricadas, no sonho das cortinas de seus quartos, onde um homem e uma mulher continuarão a se amar indiferentes.

Assim, num livro, as histórias não se apagam; são apenas outros começos.

UMA OUTRA VONTADE

foi ter guardado a foto desse livro:

era leitura da faculdade, peça de Beaumarchais (ou O barbeiro de Sevilha ou As bodas de Fígaro, ou as duas, visto que uma é continuação da outra). O que a foto diz do enredo? Não sei mais, sei lá se eu sabia na época. A data da foto, diz aqui, é 15 de junho de 2006. Ficou só ela, tirada mais ou menos na mesma posição em que me encontro agora enquanto escrevo.

CADERNOS DE INFÂNCIA

já tem um lugar especial nas lembranças que ligo às leituras. Juntamente com seu tom ao mesmo tempo único e comum a outros maravilhosos memorialistas (observo uma mesma vista embaçada que se volta ao tempo de criança no campo, o espaço da casa, a réstia de luz que também percorrem a Infância de Graciliano e A idade viril de Leiris, construídos em fragmentos, em pequenos seixos), vivi com ele ou por conta dele uma terrível sensação de desmaio hoje, no ônibus.

Norah falava sobre a cicatriz de seu dedo, perdi a pressão, tive que fechar o livro rapidamente. A tempo consegui me sentar, uma senhora de aparelho dentário me ofereceu água de coco, um moço me deu uma barra de cereais.

O aperto frente à narrativa das feridas de infância, tão presente em outros textos igualmente belos e hipnotizantes, me tocou no corpo dessa vez.